domingo, 25 de maio de 2008

O Prosaico e o Prolixo

O povo é uma merda. A sociedade instiga reflexões céticas. Bandido bom é bandido morto. Foucalt elabora teses coerentes sobre o sistema penal. Não corte a melancia. A protuberância lombar desta mulher é libidinosa. Político é tudo ladrão. A incoerência ideológica da política brasileira nos tira a fé na democracia. Álcool? Todo dia é dia. Biodísel? Desde que não interrompa o combate à fome. Já que é pra votar, que seja no que asfaltou a minha rua. Analfabetos são massas bovinas.

Circulada por reiterações cíclicas, a sociedade brasileira escava cada vez mais fundo o abismo entre o ignorante e o intelectual. Se um vê o mundo e parte das opiniões gerais para ter a sua, o outro elabora a suas sínteses críticas balizando-as em análises acadêmicas. Qual é a diferença? Um é prosaico, avalia pura e simplesmente o que vê, toma posição com base nos seus sentimentos imediatos e impõe sua visão sem saber qual é. O outro é prolixo, vê pura e simplesmente o que avalia, sofre com a incapacidade dos demais em acompanhá-lo, mas é incapaz de adaptar seu discurso de forma acessível.

Quando vê um assassinato, o prosaico logo se enfurece. Não aceita. Não quer motivos, só castigo. Não quer vagabundo na rua. Acha um absurdo a lei. Pra que? Não dá vontade de matar um bandido? Que mate, é bandido. É passional. É dominado por desejos primitivos e descontrole das emoções em um ambiente hostil. Identifica-se erroneamente com a extrema direita. Quando vê a corrupção, nem se incomoda. Quando lê textos bizarros no jornal, acha graça. Ao ver que a mídia pensa como ele, se orgulha. O prosaico se acha direto, e vê no prolixo um alienado incapaz de ver o mundo em que vive.

O prolixo apura causas e efeitos. Desata teorias e arquiteta modelos estruturalistas. Constrói uma realidade para sua análise, e não o contrário. Critica a objetividade, mas subjetiva tanto que plana sobre bolhas de sabão que estouram com o badalar dos relógios derretidos de Dali. Não lhe ocorre limpar a sujeira, só dizer o quanto está sujo. Lamenta a pobreza, a ignorância e a desigualdade. Até chora. Tem compaixões reais, mas contenta a consciência com a crítica. Idolatra mitos, mas mistifica um mundo onde os homens são simples de tão complexos. Criminoso? Família sem estrutura. Corrupto? Coersão social. Prosaico? Inculto.

O primeiro credita mérito apenas à experiência. Valoriza a força da prática, em detrimento da “irrelevância da teoria”. Casa dois mais dois sendo quatro para tudo, e arredonda se for preciso. Tem fé em Deus, e pé na tábua. Seja Deus o bolso que ele enche de dinheiro, e a tábua, o caminho esburacado que usa para chegar em casa. O prosaico sempre é pobre. Leia-se pobreza a falta de poder aquisitivo para comprar cultura, a falta de sensibilidade para se compadecer do próximo, ou a falta de inteligência para compreender o que lhe soa complexo. Executivos, professores universitários, líderes religiosos e policiais podem estar na mesma classe sem muitos problemas.

O segundo tenta fugir do óbvio. Pensa em algo que não foi dito utilizando tudo aquilo que já lera. Incorre em incoerências, e depois, sem poder eliminá-las, as louva como a beleza da vida. Cultua as diferenças e a tolerância, mas não admite que opiniões destoantes do costumeiro e limitado círculo dos grandes autores sejam veiculadas, ainda que defenda a liberdade de expressão. Legitima o direto de autoridade, mesmo estando ele na democracia de idéias. Defende a educação universalizada, mas não compartilha seus conhecimentos com um universo maior de ouvintes e leitores. Cultiva sua aparência original com acessórios e roupas exóticas, que lhe conferem moral acadêmica e ridicularização popular. Sua casa amontoa livros e filmes, aos quais, assistir uma única vez já é o bastante. Mais vale um Nietczche na mão do que dois voando pelas bibliotecas escolares. Este grupo é menos variado, vai de Nerds arrogantes e autistas a intelectuais esquizofrênicos, o que pode incluir ainda bem-intencionados e homens de fé.

O antigo equilíbrio de forças entre os prosaicos e os prolixos sede espaço a um cenário em que estes perdem terreno precioso. O Brasil aprende cada vez mais a ignorar intelectuais e teóricos, marginalizados em suas teses. Os atuais formadores de opinião muitas vezes dizem aquilo que se quer ouvir, o que parece óbvio e irracional. É claro que utilizam um instrumental eficiente que lhes confere persuasão irresistível. Muito disso é culpa dos próprios prolixos que não foram capazes de construir pontes entre sua estrutura cognitiva e a realidade que, algumas vezes, é de fato objetiva. O crédito maior vai, como sempre, para o pensamento mercadológico, ao qual a opinião chata e contrária à vontade do público é desinteressante.

Algo no prolixo precisa ser resgatado. Reciclado. Algo, ou quase tudo, no prosaico deve ser extirpado. O homem capaz de construir um mundo equilibrado deve ter a capacidade de ir além do que se vê, mas tem que ser apto a fazer com que os demais vejam o que ele enxerga. Tem que refletir as decisões, mas deve tomá-las. Não deve se restringir ao mundo das idéias, nem ao das emoções imediatas. Não há nada de novo neste discurso. Platão profetizava que o homem ao escalar a caverna e atingir a luz, deveria voltar à escuridão e retirar os demais das sombras ilusórias. Mais difícil que ascender à luz seria imergir novamente nas trevas. Quanto a isto não há dúvida: a salvação não está ao alcance do prosaico, somente do prolixo.

sábado, 3 de maio de 2008

A dívida que permanece

Ao sacar seu cartão de crédito, João é surpreendido. “As parcelas a partir de 12 vezes são só para negros”, adverte o vendedor. Sem entender, coça seus cabelos crespos, e argumenta: “Mas eu sou negro, filho e neto de negros.” O caixa pega então o cartão e lê a identificação: “João Pereira de Souza: 45% negro, 25% pardo, 20% árabe e 10% branco. Se não é 50% negro não pode comprar em 12 vezes, apenas em 6. Parece que um de seus avós pulou a cerca.”

A esdrúxula história tem como único objetivo mostrar quão equívoca é a “discriminação positiva” entre as etnias de um país. Esta semana um estimável grupo de ilustres apresentou ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, um manifesto contrário às cotas raciais nas universidades públicas. A carta assinada por Caetano Veloso, João Ubaldo Ribeiro, Demétrio Magnoli e Ferreira Gullar, entre outros “representantes” da sociedade civil, tem como argumento central a deficiência da política de inclusão. O grupo acredita que a iniciativa favorece uma minoria negra que teve acesso à formação intelectual de qualidade, o que se opõe às condições da população pressuposta pelo programa.

Tomando como base um dado claro na sociedade brasileira: a presença majoritária de negros nas camadas menos abastadas, a proposta foi elaborada para garantir que o número de desfavorecidos cresça entre os universitários. Ainda que bem intencionada, a ação oculta um preconceito, o de que ser negro é condição si ne qua non para ser pobre. Ao se contrapor à medida, a carta evidencia um traço que também é claro no Brasil: a presença de negros nas classes mais bem remuneradas da sociedade. Apesar de proporcionalmente menor, esse grupo de negros nas classes A, B e C têm se beneficiado com as cotas, tirando oportunidades de negros, brancos e pardos que deveriam ser os alvos do programa.

Ainda que a crítica proceda – e quem sou eu para julgar o contrário, visto o gabarito dos signatários – não é de bom tom esquecer que grande parte dos negros ainda não conseguiu superar as seqüelas da senzala, e mesmos os que obtiveram definitivamente a alforria, tiveram e têm que enfrentar preconceitos. Exemplos como Joaquim Barbosa, Ministro do Supremo, só pelo fato de serem exemplos, refletem a posição de desvantagem em que a população negra se encontra. Infelizmente, ainda possuem caráter de exceção. O racismo existente no Brasil talvez seja mais difícil de combater por ser camuflado, porém, não é esse o ponto central da discussão das cotas. Como política de inclusão, ela não se concentra em persuadir, mas em incluir. As cotas, portanto, não são uma forma de pagar a dívida que o país tem com os afro-descendentes, nem de derrubar os resquícios.

São uma forma de garantir que um extrato da sociedade, que não é necessariamente negro, tenha chances de exercer profissões bem remuneradas e prestigiadas, além de obter formação intelectual mais rica. A política de cotas é valida sim, mas se for direcionada a alunos de colégios públicos de má qualidade e pessoas de baixa renda de modo geral. Não como medida definitiva, e sim como reparo para os danos causados pela deficiência do Estado em fornecer educação digna.

Muitos criticam as cotas por supor que a proposta em tese provisória se tornará definitiva. É um risco que não deve ser marginalizado, cabe a sociedade cobrar. Ao mesmo tempo que a entrada na universidade é facilitada, os maiores investimentos devem ser deslocados para a educação de base. Países como Coréia do Sul, Espanha e Irlanda que tiveram essa iniciativa, hoje gozam de vigoroso crescimento econômico. Desse modo, aos poucos, serão suprimidas as vagas resguardadas. O que não pode ocorrer é estabelecer metas para os próximos quinze ou vinte anos, esquecendo os alunos que freqüentam as escolas públicas hoje. Questões emergenciais requerem medidas urgentes e planejamento para a posteridade. Essa é a dívida que deve ser quitada com as cotas.

Vestibulares à parte, o acesso universalizado ao nível superior é uma meta vital para um país que almeja o Primeiro Mundo. Seja pelo Prouni, pelos concursos tradicionais ou pelas instituições privadas, a pífia taxa de formados deve crescer. Não estatisticamente, pois números podem sonegar baixa qualidade. Aqui, bem se sabe que índices são para “inglês ver”. O brasileiro, se deseja de fato estabelecer uma democracia em seu país, precisará de desenvolvimento intelectual para atingir o esclarecimento. Só então poderá mudar o que há de irracional em sua cultura e política, e por um ponto final em débitos sociais sem revanchismos. As evidências são claras.