quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Um negro na Casa Branca


Para quem ainda duvidava que os americanos elegeriam um presidente negro, eis a resposta: 349 delegados para Obama, 173 para McCain. Arrematando o eleitorado dos maiores estados norte-americanos (com a exceção do Texas, é claro), o democrata foi chamado de pioneiro, despreparado, pop e até de Osama, mas não se pode negar que ele seja, na verdade, um símbolo.

Seria difícil Malcom X acreditar nessa história se ela não tivesse se tornado a vedete da mídia internacional. Experimente abrir o site de qualquer veículo situado entre Vladivostok e a Terra do Fogo e verá o rosto do afroamericano em praticamente todos. A euforia global, em grande medida, se deve ao fracasso diplomático dos oito anos de Bush, que terminou com a pior popularidade da história dos EUA. O War President foi odiado dentro e fora de sua nação, e conseguiu piorar a já mal quista imagem do“Tio Sam”.

Obama surfou numa onda anti-republicana, e se manteve como favorito desde a disputa com a ex-primeira dama e quase candidata Hillary Clinton. Passada a emoção da vitória histórica, o democrata deverá encarrar o lado negativo do trágico governo que serviu de garantia para sua conquista. Obama terá muito o que consertar.

O novo presidente terá que superar em primeiro momento, os drásticos efeitos que a desaceleração da economia trará logo nos primeiros dias de seu mandato. Junto com as boas novas da mudança democrata, virão os destroços de um mandato duplo recheado de irresponsabilidades econômicas. O mundo exigirá do novo líder um posicionamento contundente, que possa trazer de volta a confiança na nação causadora do cataclisma financeiro.

De Obama também será cobrada uma posição mais humana e correta no que diz respeito à diplomacia. Auxílio aos países pobres, repúdio a guerras, respeito ao meio ambiente, promessas implícitas no carro-chefe da campanha democrata , a mudança. Não é apenas um novo presidente que o mundo quer, mas uma nova "América". Um país que finalmente entre em conjunção com os novos tempos.

É claro que muito do que é pedido, não será feito. Não pensemos que Obama será o messias que nos guiará a um mundo mais justo e feliz. A igualdade racial é uma realidade distante nos EUA e no mundo, bem como a maioria dos sonhos dos eleitores democratas. O governo do novo presidente, como foi o de todos os anteriores, deverá respeitar os anseios das grandes corporações, os verdadeiros partidos políticos que guiam os EUA.

Como dizia uma genial colega de turma ontem, Obama vale mais pelo símbolo que pela prática. Ele pode não mudar nada, mas por si só já representa uma mudança significativa, a da ideologia. Os americanos disseram um não a um candidato que em muitos aspectos é o estereótipo de presidente dos EUA. Ex-militar, branco, bem aparentado, liberal e carismático. McCain, apesar de ser o mais democrata dos republicanos, carregava nas costas todo o peso de uma tradição que caiu em desuso nos EUA.

Ao ver os americanos elegerem a mudança, não pude deixar de lembrar dos cariocas. Enquanto lá o político diferente prevaleceu, aqui preferimos manter o arcaico populismo. Elegemos o calçador de ruas do subúrbio, o distribuidor de santinhos, o construtor de monumentos e praças. Apostamos na candidatura suja nas ruas e nas idéias. Ignoramos o troca-troca do candidato traiçoeiro que fez da sua campanha uma punhalada em seu padrinho político. O resultado, contudo, foi apertado. O balanço das eleições municipais no Rio foi positivo. A política renasceu. O novo não venceu, mas chegou perto, bem perto. Para quem duvidava que as classes mais desfavorecidas inviabilizariam uma candidatura inovadora, 2008 trouxe novos ares de esperança. Gabeira não é Obama, mas é a mudança que Rio espera de braços abertos. É uma pena que o carioca ainda não tenha se convencido disso.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O Mito e a Mídia

Ao buscar novidades sobre o caso Eloá na internet, surpreendi-me com o primeiro dos resultados. Eloá, do Hebraico, Deus. O acaso pareceu sinalizar que era hora compartilhar com os demais internautas algo que vem me inquietando e que, provavelmente, já deve ter sido tema de crônicas em algum lugar da web.

Uma das mais célebres histórias da Grécia Mitológica é a juventude interrompida da bela deusa Perséfone, também chamada de Cora ou Coré. Filha de Deméter, mãe da fertilidade e da Agricultura, e de Zeus, rei dos deuses, a jovem divindade encantou Hades, o rei do Mundo Inferior. Ao ver a impossibilidade de seu amor, o poderoso deus, em um momento de desespero, raptou Perséfone e a levou consigo ao Érebro, terra posterior ao Rio Aqueronte, onde os mortos encontravam seu destino eterno.

Muito se fez para que Perséfone fosse salva. As negociações beiraram uma guerra entre os Deuses do Olimpo e Hades. A tristeza de Deméter varreu as lavouras, matando até os últimos ramos das plantações. O impasse ultrapassou as fronteiras familiares e envolveu todos, causando um desabastecimento geral na Grécia. Quando viu iminente sua derrota, Hades deu à Perséfone uma romã. Uma única mordida na fruta amaldiçoada prendeu a Deusa ao submundo para sempre, frustrando as esperanças de sua mãe.

Vendo o caos no campo, a fome do povo, e a depressão de Deméter, os deuses mediaram um acordo entre Hades e a deusa da agricultura. A proposta consistia num movimento pendular que Perséfone faria anualmente. Passaria seis meses com seu marido, no submundo, e seis meses com sua mãe, no Olimpo. Como conseqüência do trato, vieram as estações do ano. Quando Perséfone voltava do submundo, tornava-se novamente a jovial Cora. A alegria intensa de sua mãe gerava a primavera, eufórica e florida, e o verão, fértil e caloroso. Ao partir mais uma vez, o clima entristecia, as folhas caíam e iniciava-se o outono. A distância da filha esfriava o coração de Deméter até que ela retornasse, pondo fim ao inverno. Ao lado do marido, que aprendeu a amar, chamava-se Perséfone, como ficou mais conhecida, e ocupava a sombria posição de rainha dos mortos.

Eloá é, hoje, o mito moderno da juventude interrompida. Seu drama, comoveu seu povo, não por meio da agricultura, mas através da mídia. O fim de sua história, contudo, não foi harmônico. Com a exploração das imagens, indemberg e Eloá incorporaram novos espelhos de vilão e vítima, fizeram o brasileiro do século XXI pensar o amor como o helênico anterior a era cristã o pensara. Homenagens foram e são prestadas às jovens. Ao invés de vasos de cerâmica e templos, perfis do orkut e vídeos no youtube. No lugar da deusa, a jovem bonita, alegre e fotogênica. Em substituição aos dramáticos contadores de história, os igualmente teatrais jornalistas.

Assim como a deusa, Eloá deixa o mundo dos vivos, porém em um caminho sem volta. triste história de Perséfone trouxe como resultado a nova organização climática, o replanejamento da agricultura e a harmonia divina. E o seqüestro de Santo André, que heranças deixará?

*Imagem retirada de jornale.com.br

domingo, 7 de setembro de 2008

Um por todos e todos por um


Athos, Porthos, Aramis e D’Artagnan proferiram o lema que eternizou o clássico de Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros. Na história, o jovem D’Artagnan, vindo do interior, conhece os três inseparáveis guerreiros e passa a acompanhá-los em épicas aventuras em nome da coroa francesa. Nas batalhas, um era responsável pela segurança dos outros, e intervinha em seu favor sempre que podia. Deste modo, tornavam-se invencíveis, já que a vida de um era sempre em prol dos companheiros.

Na democracia a lógica não é exatamente essa, ou pelo menos não deveria ser. A ação integrada dos três poderes se dá de modo independente, por mais contraditório que isto pareça. Vale repetir o tradicional discurso em que o Legislativo faz as leis, o Executivo às executa e o Judiciário fiscaliza seu cumprimento. O pleno trabalho dos três pilares do Estado permite que a vida democrática se sustente. A disfunção de um pode contaminar os outros e tornar ineficiente o complexo sistema idealizado por Montesquieu.

Na Democracia Brasileira, disfunção já é um eufemismo. O país que após a independência passou por um império e duas ditaduras, hoje se perde diante de um sistema que constantemente manda a Constituição para o espaço. Terra de emendas mil, o Brasil está soterrado por medidas provisórias, leis que não pegam e CPIs que não andam. A ineficiência das instituições públicas pode ser reflexo da corrupção, mas também se deve a uma incompetência quase generalizada mesmo que, às vezes, bem intencionada. Salvam-se exceções que lutam para que a máquina democrática se movimente com muito custo, seja ele representado por suor ou dólares.

A confusão, que termina em grampos e escândalos políticos, começa no desrespeito a termos fundamentais: legislar, executar e julgar. O primeiro, que deveria ser tarefa do Legislativo, tem sido largamente praticado pelo Executivo há anos, e mais recentemente também entrou na pauta do Judiciário. Seja pela lentidão das votações ou pela rixa de interesses que nem sempre são os de um Estado eficiente, os parlamentares estão no centro da crise. Para se defender, acusam o Palácio do Planalto, que governa por medidas provisórias e limita a atuação dos congressistas.

A disputa pela maioria no legislativo vai parar na sede das estatais e ministérios. Sendo assim, as poucas votações normalmente obedecem a acordos e nomeações que hora favorecem a uns e a outros, conforme for a necessidade. As CPIs, palcos de malabarismos e performances midiáticas, acabam por ser plataforma para políticos que visam a cargos no executivo municipal e estadual.
Em âmbitos menores, o Executivo também julga. Como? Guardiões da lei de todas as partes da Federação não deixam que muitos de seus suspeitos cheguem ao tribunal. Infratores e inocentes são julgados diariamente pelos juízes ilegítimos. O Judiciário, na crise de atribuições, também legisla e formula políticas.

Esta semana, a estranha denúncia da Veja marca mais um capítulo da invasão no quintal alheio. O Senador do Democratas e o Ministro do Supremo, pegos em flagrante durante uma conversa amigável e cívica, ilustram mais um desrespeito constitucional, cometido por órgãos públicos, o desdém pelos direitos individuais.

No panorama descabido, o “Quarto Poder” também tomou “liberdades”. Acusar, julgar e punir já é uma realidade multimídia, alimentada pelo vazamento infindável de informações sigilosas e denúncias anônimas movidas por interesses nebulosos. A própria conversa entre Demóstenes Torres e Gilmar Mendes, teria chegado à Veja já transcrita, de acordo com artigo de Alberto Dimes, no Observatório da Imprensa. Vale refletir se os escândalos pirotécnicos do jornalismo brasileiro estão simplesmente interessados em aumentar a tiragem, ou querem algo mais.

Uma perigosa conseqüência da prevaricação estatal é o fortalecimento do poder paralelo. Inspirados nos desvarios institucionais, os criminosos já cobram serviços postais, fornecem serviços básicos como água, luz e gás e possuem seus próprios tribunais. O problema se agrava quando o poder que era marginal se infiltra nas estruturas estatais até mesmo via eleições. Não se trata de uma exclusividade de milicianos cariocas ou de coronéis nordestinos, grandes cúpulas corporativas também exercem sua fatia de influência.

Diante do quadro quase carnavalesco em que se encontra a soberania popular, conquistada com tanto custo e hoje transformada em triste podridão, só nos resta a parte mais importante: a mobilização e consciência para nesta eleição buscar uma alternativa ao caos que se apresenta. Uma nova mentalidade é necessária para que o dia de hoje de fato tenha valor. A propósito, bom sete de setembro, se é que feriado no domingo pode ser bom...

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A Boa Idéia da China

08/08/08, dificilmente esse dia será esquecido nos próximos anos. Após uma escandalosa cerimônia de abertura, a China deu início não somente às Olimpíadas, mas também a sua principal estratégia de promoção internacional. Ainda mais impressionantes que o início foram o desenrolar e o desfecho do evento. As 51 medalhas de ouro mostram que o projeto Pequim 2008 foi uma boa idéia.

Os atletas dos mais de 200 países que competiram nas inúmeras modalidades lutavam por realização pessoal, por conquistas que tornariam gloriosa uma trajetória de privações e determinação. Os chineses se comportavam de outro modo, tinham uma obstinação militar, quase que um dever para com seu governo. Nem a tão aclamada ideologia do sucesso individual dos americanos foi capaz de pará-los. Enquanto os outros países eram representados por seus esportistas, a China era defendida por “soldados” de todas as minorias étnicas, desde a quase impúbere ginasta Yang Yilin até o campeão de levantamento de peso Hui Liao.

O Projeto 119, que considerou as provas em que os chineses detinham chances de vitória, começava cedo, ainda nas escolas. Crianças que se destacavam na educação física eram selecionadas, separadas da família, e enviadas a centros de treinamento. Cerca de 185 mil jovens se prepararam em 1.800 pólos, gerando 20 mil atletas com potencial olímpico, de acordo com a revista Época. Imagine todas as pessoas que passam pela Marquês de Sapucaí em uma noite de desfiles com sete escolas, pois bem, é mais ou menos isso.

Seguindo as linhas Soviética e Cubana, a China viu no esporte um modo de aumentar a auto-estima da população e, ao mesmo tempo, ganhar visibilidade internacional. Deu certo. Apesar dos “poréns” que foram levantados pela imprensa internacional durante todo o período dos jogos, a imagem do regime é melhor agora que antes da competição. Ficou a impressão de que na China tudo funciona.

Quem leu um pouco além das notícias esportivas que se referiam a Pequim sabe que não foi bem assim. Imbuídos do espírito olímpico os chineses proibiram manifestações, ou melhor, restringiram os locais hábeis e exigiram permissão do governo. O que se viu foram protestos frios, sem visibilidade e autenticados em três vias. Reza a lenda que uma parte da população não teve acesso a certos locais da cidade e que nem todos os que quiseram ver os jogos puderam viajar de outras partes da China para a capital. O antigo hábito de cuspir na rua também foi vítima da vaidade governamental. Ao contrário do prometido, a censura não cessou durante as Olimpíadas.

Tais detalhes, porém, passaram quase despercebidos diante do brilhantismo arquitetônico de estádios como o Ninho do Pássaro e o Cubo D’Água. A vila olímpica de altíssimo nível impressionou até os atletas de países desenvolvidos, e o céu, forçosamente azul, surpreendeu os espectadores. A aparente limpeza atmosférica foi efêmera, fábricas foram fechadas durante o evento. Agora que os jogos acabaram, Pequim voltará ao normal, pelo menos é nisso que quer acreditar o regime.

Prepotentes, os americanos afirmam que após experimentar “dias de ocidente”, os chineses passarão a ser mais críticos e exigentes. “A democracia virá como resultado da troca cultural entre os países desenvolvidos e a nova potência”, mentalizam os líderes do G7.

O contrário pode estar acontecendo. Com o sucesso dos jogos, o regime fortalece sua popularidade, engrossa o nacionalismo e aponta para um novo método de obter sucesso, não mais o balizado por um conjunto de sucessos pessoais, mas o que é fruto de um planejamento estatal, que nem sempre respeita o indivíduo, valor máximo do ocidente. Vale olhar para o crescimento econômico, que por muitos anos se sustentou sobre massas mal remuneradas que atraíram empresas com sede de humanos sem direitos. Hoje, são os desenvolvidos que enfrentam problemas por sua mão-de-obra cara. Talvez um novo modelo tenha esteja prestes a saltar sobre o século XXI, um que busque recordes produtivos eliminando cada vez mais o “atrito humano”. Especula-se muito, mas não se sabe ao certo o que nasceu no Ninho do Pássaro.

domingo, 8 de junho de 2008

A Mulher Moderna

Mas você tem um plano? Não eu tenho um vestido. Em reportagem de capa da edição desta semana, a revista Época celebra a ascensão de um estilo de vida feminino da classe média, que não tem culpa em assumir a compulsão sexual-consumista. Intituladas mulheres modernas pós-feministas, as personagens de Sex And The City, que ganhou adaptação no cinema, se tornaram modelos de um movimento de auto-estima e gastos fúteis elevadíssimos.

Após toda a luta feminista por liberdade, é vergonhoso a mulher do século XXI permitir que sua imagem seja “inventada”, como sugere a revista, por um seriado enlatado com fins claramente comerciais e ideológicos. Quando Carrie (Sarah Jessica Parker) afirma ter prazer em gastar R$485 dólares em sapatos por não ter que comprar fraudas, diabolicamente usa de um discurso convidativo. As mulheres, assim como todos os seres humanos, querem ver seus desejos imediatos satisfeitos, e comprar fraudas dificilmente aí estaria enquadrado. Por que é tão vantajoso glorificar as vontades? Porque nada é mais irracional que o anseio de ter, que na sociedade moderna necessariamente implica em consumir.

Nada é gratuito em Sex And The City, nem na reportagem da Época. Em sua generosa missão civilizatória de transpor a cultura americana em terras verde e amarelas, a revista não poderia deixar de comparar as dondocas novaiorquinas com paulistanas bem resolvidas. São Paulo, como sempre, é espelho de Nova Iorque. A estratégia de distribuir os papéis para “mulheres de verdade” pula algumas etapas na identificação com o público feminino e vai direto ao que interessa: qual das quatro você é? Ou, se preferir, qual das quatro você tem que ser?

Carrie, que não é a estranha, é um pôster publicitário da multi-bilionária indústria da moda. Fútil? Não, apenas mulher. Isto é o que você, leitora, deve pensar. Relacionar a insana compulsão por roupas caras à natureza feminina é um insulto a sua inteligência. Samantha, “muleca-piranha”, pensa como os “homens”, reduzidos a meros animais no cio. Maquia-se porém com uma feminilidade que caracteriza-se por muito dourado e saltos altíssimos, como explica a revista, que comemora a relação amorosa da personagem com outra interpretada por Sônia Braga. Brasil-sil-sil! Independente e mãe solteira, a workaholic Miranda teme terminar como uma medíocre mulher de família, com um marido e um cachorro. Charlotte é tida como o limite do pudor na série, apesar de deitar-se com metade da cidade. Acredita no amor ainda que afirme que orgasmos não mandam bilhetes nem seguram a mão no cinema – frase selecionada pela reportagem.

Quem não se identificar com nenhum dos quatro esteriótipos não deve se decepcionar. A revista indica cuidadosamente como cada uma se veste e pensa, para que não seja difícil o “upgrade”. A reportagem dedica a longevidade da série à capacidade de formular as perguntas certas e relevantes que as mulheres devem fazer: Devo telefonar para ele ou esperar? Ter filhos ou comprar sapatos?

Solteira, com mais de 30 anos, urbana, bem sucedida, consumista, sexualmente ativa e na moda. Esta não só é como deve ser a mulher moderna, na visão do seriado e da revista. Se você tem dívidas no cartão, sobre-peso, uma casa no subúrbio, um sub-emprego ou um marido que vê o jogo todo domingo, não atende aos pré-requisitos necessários para ser uma mulher feliz no século XXI, apesar de sofrer com todos os contratempos contemporâneos. A realidade de Sex And The City é precisa, mas não é a mesma das milhões de mulheres brasileiras que freqüentam lojas de departamento e compram fraudas. Se o público-alvo da reportagem foi as quatro personagens da série e suas seguidoras egoístas e esquizofrênicas, a revista está mais in do que nunca.
*imagem retirada de wildaboutmovies.com

sábado, 7 de junho de 2008

A Subversão é Grená


Eis me aqui leitor para falar de futebol. Aviso que não se trata de uma de minhas especialidades, se é que tenho alguma, nem de meus maiores interesses. Portanto, não espere análises táticas das escalações, críticas à arbitragem ou prospectos do jogo. O que direi parte de um leigo, que apesar de desconhecer as minúcias do esporte, não pôde deixar de observar certa anormalidade.

A última quinta-feira amanheceu com tons de verde e grená. Esporadicamente algum laranja mais agressivo era visto entre as calçadas e carros, representando uma multidão que talvez só agora reconheça a própria existência. Por mais que neguem o espanto, os amargurados rivais, que não tiveram uma noite tão boa, notam algo de estranho nas ruas fluminenses. A massa tricolor, nomenclatura que não caberia em outras épocas, domina a paisagem em um renascimento que é, diga-se de passagem, admirável.

Aos que não compartilham da mesma euforia, fica um sentimento estranho, algo que poderia ser inveja, com sua larga lista de sinônimos e eufemismos. Nas mentes, as informações não foram devidamente processadas, os antigos padrões de probabilidade e aceitabilidade de um fato travam o meio de campo. Fica a sensação de que houve uma subversão, uma quebra na ordem natural das coisas. A chegada à final da Libertadores não mexe somente com a torcida do Fluminense, contradiz tabus de impossibilidade que obrigam os demais a tentar entender tal nova conjectura.

Um certo receio ainda possui a mente dos tricolores, desacostumados a grandes façanhas, porém é sufocado por uma fé reinventada, recuperada dos tempos de sucesso do clube. A vitória sobre o Boca Juniors não foi simplesmente um jogo, foi uma realidade nova que se impôs. O gigante argentino foi derrubado com muito custo, mas derrubado. Toda a coerção que fazia os próprios jogadores recearem, mostrou que é apenas coerção.

Eu, resignado torcedor botafoguense, não pude evitar uma inexplicável alegria ao ver a ruptura paradigmática. O Fluminense, visto por mim como um time fatidicamente perdedor como o meu, está agora na final do campeonato continental de clubes. O que mais assusta, é que os tricolores de fato acreditam na vitória, e têm toda a razão. Os quase 80 mil revolucionários que encheram o Maracanã tinham ânsia, e não lhes bastaria nada, senão a queda da Bastilha. Em minha concepção pessimista do esporte, duvidaria da vitória sobre o hermano opressor, mesmo depois de presenciar o resultado, e, vendo o Botafogo na final, acharia óbvio que o único motivo de tão longas braçadas e pernadas seria morrer na praia com requinte de crueldade.

Viagens à parte, não posso deixar de fazer uma observação, que justifica o primeiro texto de futebol do blog: não é bom subverter a ordem? Os puritanos que não compreendam mal o sentido em que uso tão maldito verbo. O Fluminense deixa a lição de que nem tudo o que é, precisa ser eternamente. De que é possível superar, mudar e evoluir. De que os invencíveis inimigos talvez não sejam tão poderosos quanto assustadores. E de que a ordem natural das coisas, caso incômoda, deve e pode ser subvertida. Se, apesar da histórica vitória, os tricolores não vencerem a LDU, que não se perca esse aprendizado. Que não retornemos a estaca zero a zero, em que o empate parece confortável para todos.

Contentem-se com tal crônica, pois aqueles que já "penduraram as chuteiras" e caminham pelos Campos Elísios com certeza deleitam-se agora com um belíssimo texto, escrito orgulhosamente por um dos maiores tricolores, Nelson Rodrigues.
* Imagem retirada de www.marcelomoutinho.com.br

domingo, 25 de maio de 2008

O Prosaico e o Prolixo

O povo é uma merda. A sociedade instiga reflexões céticas. Bandido bom é bandido morto. Foucalt elabora teses coerentes sobre o sistema penal. Não corte a melancia. A protuberância lombar desta mulher é libidinosa. Político é tudo ladrão. A incoerência ideológica da política brasileira nos tira a fé na democracia. Álcool? Todo dia é dia. Biodísel? Desde que não interrompa o combate à fome. Já que é pra votar, que seja no que asfaltou a minha rua. Analfabetos são massas bovinas.

Circulada por reiterações cíclicas, a sociedade brasileira escava cada vez mais fundo o abismo entre o ignorante e o intelectual. Se um vê o mundo e parte das opiniões gerais para ter a sua, o outro elabora a suas sínteses críticas balizando-as em análises acadêmicas. Qual é a diferença? Um é prosaico, avalia pura e simplesmente o que vê, toma posição com base nos seus sentimentos imediatos e impõe sua visão sem saber qual é. O outro é prolixo, vê pura e simplesmente o que avalia, sofre com a incapacidade dos demais em acompanhá-lo, mas é incapaz de adaptar seu discurso de forma acessível.

Quando vê um assassinato, o prosaico logo se enfurece. Não aceita. Não quer motivos, só castigo. Não quer vagabundo na rua. Acha um absurdo a lei. Pra que? Não dá vontade de matar um bandido? Que mate, é bandido. É passional. É dominado por desejos primitivos e descontrole das emoções em um ambiente hostil. Identifica-se erroneamente com a extrema direita. Quando vê a corrupção, nem se incomoda. Quando lê textos bizarros no jornal, acha graça. Ao ver que a mídia pensa como ele, se orgulha. O prosaico se acha direto, e vê no prolixo um alienado incapaz de ver o mundo em que vive.

O prolixo apura causas e efeitos. Desata teorias e arquiteta modelos estruturalistas. Constrói uma realidade para sua análise, e não o contrário. Critica a objetividade, mas subjetiva tanto que plana sobre bolhas de sabão que estouram com o badalar dos relógios derretidos de Dali. Não lhe ocorre limpar a sujeira, só dizer o quanto está sujo. Lamenta a pobreza, a ignorância e a desigualdade. Até chora. Tem compaixões reais, mas contenta a consciência com a crítica. Idolatra mitos, mas mistifica um mundo onde os homens são simples de tão complexos. Criminoso? Família sem estrutura. Corrupto? Coersão social. Prosaico? Inculto.

O primeiro credita mérito apenas à experiência. Valoriza a força da prática, em detrimento da “irrelevância da teoria”. Casa dois mais dois sendo quatro para tudo, e arredonda se for preciso. Tem fé em Deus, e pé na tábua. Seja Deus o bolso que ele enche de dinheiro, e a tábua, o caminho esburacado que usa para chegar em casa. O prosaico sempre é pobre. Leia-se pobreza a falta de poder aquisitivo para comprar cultura, a falta de sensibilidade para se compadecer do próximo, ou a falta de inteligência para compreender o que lhe soa complexo. Executivos, professores universitários, líderes religiosos e policiais podem estar na mesma classe sem muitos problemas.

O segundo tenta fugir do óbvio. Pensa em algo que não foi dito utilizando tudo aquilo que já lera. Incorre em incoerências, e depois, sem poder eliminá-las, as louva como a beleza da vida. Cultua as diferenças e a tolerância, mas não admite que opiniões destoantes do costumeiro e limitado círculo dos grandes autores sejam veiculadas, ainda que defenda a liberdade de expressão. Legitima o direto de autoridade, mesmo estando ele na democracia de idéias. Defende a educação universalizada, mas não compartilha seus conhecimentos com um universo maior de ouvintes e leitores. Cultiva sua aparência original com acessórios e roupas exóticas, que lhe conferem moral acadêmica e ridicularização popular. Sua casa amontoa livros e filmes, aos quais, assistir uma única vez já é o bastante. Mais vale um Nietczche na mão do que dois voando pelas bibliotecas escolares. Este grupo é menos variado, vai de Nerds arrogantes e autistas a intelectuais esquizofrênicos, o que pode incluir ainda bem-intencionados e homens de fé.

O antigo equilíbrio de forças entre os prosaicos e os prolixos sede espaço a um cenário em que estes perdem terreno precioso. O Brasil aprende cada vez mais a ignorar intelectuais e teóricos, marginalizados em suas teses. Os atuais formadores de opinião muitas vezes dizem aquilo que se quer ouvir, o que parece óbvio e irracional. É claro que utilizam um instrumental eficiente que lhes confere persuasão irresistível. Muito disso é culpa dos próprios prolixos que não foram capazes de construir pontes entre sua estrutura cognitiva e a realidade que, algumas vezes, é de fato objetiva. O crédito maior vai, como sempre, para o pensamento mercadológico, ao qual a opinião chata e contrária à vontade do público é desinteressante.

Algo no prolixo precisa ser resgatado. Reciclado. Algo, ou quase tudo, no prosaico deve ser extirpado. O homem capaz de construir um mundo equilibrado deve ter a capacidade de ir além do que se vê, mas tem que ser apto a fazer com que os demais vejam o que ele enxerga. Tem que refletir as decisões, mas deve tomá-las. Não deve se restringir ao mundo das idéias, nem ao das emoções imediatas. Não há nada de novo neste discurso. Platão profetizava que o homem ao escalar a caverna e atingir a luz, deveria voltar à escuridão e retirar os demais das sombras ilusórias. Mais difícil que ascender à luz seria imergir novamente nas trevas. Quanto a isto não há dúvida: a salvação não está ao alcance do prosaico, somente do prolixo.

sábado, 3 de maio de 2008

A dívida que permanece

Ao sacar seu cartão de crédito, João é surpreendido. “As parcelas a partir de 12 vezes são só para negros”, adverte o vendedor. Sem entender, coça seus cabelos crespos, e argumenta: “Mas eu sou negro, filho e neto de negros.” O caixa pega então o cartão e lê a identificação: “João Pereira de Souza: 45% negro, 25% pardo, 20% árabe e 10% branco. Se não é 50% negro não pode comprar em 12 vezes, apenas em 6. Parece que um de seus avós pulou a cerca.”

A esdrúxula história tem como único objetivo mostrar quão equívoca é a “discriminação positiva” entre as etnias de um país. Esta semana um estimável grupo de ilustres apresentou ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, um manifesto contrário às cotas raciais nas universidades públicas. A carta assinada por Caetano Veloso, João Ubaldo Ribeiro, Demétrio Magnoli e Ferreira Gullar, entre outros “representantes” da sociedade civil, tem como argumento central a deficiência da política de inclusão. O grupo acredita que a iniciativa favorece uma minoria negra que teve acesso à formação intelectual de qualidade, o que se opõe às condições da população pressuposta pelo programa.

Tomando como base um dado claro na sociedade brasileira: a presença majoritária de negros nas camadas menos abastadas, a proposta foi elaborada para garantir que o número de desfavorecidos cresça entre os universitários. Ainda que bem intencionada, a ação oculta um preconceito, o de que ser negro é condição si ne qua non para ser pobre. Ao se contrapor à medida, a carta evidencia um traço que também é claro no Brasil: a presença de negros nas classes mais bem remuneradas da sociedade. Apesar de proporcionalmente menor, esse grupo de negros nas classes A, B e C têm se beneficiado com as cotas, tirando oportunidades de negros, brancos e pardos que deveriam ser os alvos do programa.

Ainda que a crítica proceda – e quem sou eu para julgar o contrário, visto o gabarito dos signatários – não é de bom tom esquecer que grande parte dos negros ainda não conseguiu superar as seqüelas da senzala, e mesmos os que obtiveram definitivamente a alforria, tiveram e têm que enfrentar preconceitos. Exemplos como Joaquim Barbosa, Ministro do Supremo, só pelo fato de serem exemplos, refletem a posição de desvantagem em que a população negra se encontra. Infelizmente, ainda possuem caráter de exceção. O racismo existente no Brasil talvez seja mais difícil de combater por ser camuflado, porém, não é esse o ponto central da discussão das cotas. Como política de inclusão, ela não se concentra em persuadir, mas em incluir. As cotas, portanto, não são uma forma de pagar a dívida que o país tem com os afro-descendentes, nem de derrubar os resquícios.

São uma forma de garantir que um extrato da sociedade, que não é necessariamente negro, tenha chances de exercer profissões bem remuneradas e prestigiadas, além de obter formação intelectual mais rica. A política de cotas é valida sim, mas se for direcionada a alunos de colégios públicos de má qualidade e pessoas de baixa renda de modo geral. Não como medida definitiva, e sim como reparo para os danos causados pela deficiência do Estado em fornecer educação digna.

Muitos criticam as cotas por supor que a proposta em tese provisória se tornará definitiva. É um risco que não deve ser marginalizado, cabe a sociedade cobrar. Ao mesmo tempo que a entrada na universidade é facilitada, os maiores investimentos devem ser deslocados para a educação de base. Países como Coréia do Sul, Espanha e Irlanda que tiveram essa iniciativa, hoje gozam de vigoroso crescimento econômico. Desse modo, aos poucos, serão suprimidas as vagas resguardadas. O que não pode ocorrer é estabelecer metas para os próximos quinze ou vinte anos, esquecendo os alunos que freqüentam as escolas públicas hoje. Questões emergenciais requerem medidas urgentes e planejamento para a posteridade. Essa é a dívida que deve ser quitada com as cotas.

Vestibulares à parte, o acesso universalizado ao nível superior é uma meta vital para um país que almeja o Primeiro Mundo. Seja pelo Prouni, pelos concursos tradicionais ou pelas instituições privadas, a pífia taxa de formados deve crescer. Não estatisticamente, pois números podem sonegar baixa qualidade. Aqui, bem se sabe que índices são para “inglês ver”. O brasileiro, se deseja de fato estabelecer uma democracia em seu país, precisará de desenvolvimento intelectual para atingir o esclarecimento. Só então poderá mudar o que há de irracional em sua cultura e política, e por um ponto final em débitos sociais sem revanchismos. As evidências são claras.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

– Querida, encolhi o Estado!

A despeito do fim da CPMF, em todas as esferas governamentais a oferta de cargos públicos só cresce. Das longínguas Prefeituras às mais altas cúpulas do Judiciário, editais convocam todos os níveis de escolaridade a partilhar o bolo estatal. Do Banco do Brasil de São Paulo, à Caixa Econômica do Acre. Supremos, os tribunais julgam procedente o aumento quantitativo de folhas de pagamento. As reprovadas gestões que perdiam pontos pela baixa qualidade dos mandatos recuperam a imagem abrindo vagas sem preencher as lacunas dos serviços prestados à população. O Brasil parece ter minimizado a questionável adesão ao conceito de Estado Mínimo. Será?

Teoricamente, o oposto deveria acontecer. Após conhecer as maravilhas da abertura de mercado, a população deveria almejar sucesso nas grandes empresas privadas. Contudo, grande parte da sociedade opta hoje pelo antes tão criticado Estado Paternalista. Muito menos empreendedor que o exigido pelo sistema, o brasileiro busca acima de tudo a estabilidade, ainda que com salários menores e funções menos prestigiadas.

A tranqüilidade se sobrepõe então a insana busca pelo sucesso. A alternativa é muito mais lógica. A exploração de mão-de-obra, desvalorizada com crescente exército de reserva, levou a percepção de que a competitividade é um risco para o homem competitivo e reduz sua vida a um só objetivo: qualificar-se. O desejo por salários cada vez maiores continua, mas agora saber que o pagamento estará lá nos próximos anos é mais importante. Talvez a busca seja pela manutenção do poder de consumo, e não pela felicidade em outras áreas da vida, mas é fato que um novo paradigma de sucesso se cristalizou na sociedade.

O brasileiro do início do século XXI prefere ser um burocrata a trabalhar em escalas desumanas de horas-extras, feriados e fins de semana. Dificilmente se encontra alguém que não trocaria sua “possibilidade de crescer com a empresa” por uma pequena carga horária com benefícios, ainda que com salários menores. De que adianta vestir a camisa da companhia se ela não se compromete a vestir a sua?

Astuto, o capitalismo obviamente já encontrou uma forma de se beneficiar com a nova demanda. O mercado de cursos preparatórios ostenta hoje uma gorda participação no setor terciário. Empreendedores gabaritados promovem a nova ideologia, e os questionamentos da “quadrada” ideologia neoliberal parecem ter sido apaziguados. A esquerda pró-estatal ganhou um aliado na luta contra a terceirização dos serviços públicos. Um aliado que na verdade apóia apenas o próprio bolso. Aumentar o estado agora é lucro.

Menos lembradas, as administradoras privadas também têm muito que comemorar. Dificilmente um órgão oferece vagas sem antes contratar uma firma privada para organizar a seleção. O montante de divisas engorda com a demanda por vagas. Os serviços oferecidos vão desde provas a correções e classificações. É preciso estar atento à eficiência da fiscalização.

Conforme os gastos com pagamento de salários crescem, o governo usa mais uma vez o emprego como arma eleitoral. Como ano de eleições municipais, 2008 promete abrir concursos da Prefeitura de Oiapoque à Câmara de Chuí. Apesar do uso deliberado do dinheiro público, o Estado de fato tem o dever de garantir a oferta de empregos. Isso não quer dizer contratar todos os desempregados. Há um ponto de equilíbrio entre a Dama e a Cortina de Ferro que não fundirá os cofres nacionais e, por tabela, os nossos bolsos.

Postos à prova, os governantes tem apenas quatro anos de duração para responder a inúmeras questões. As indisciplinas são muitas, já que o programa não é assim tão claro. Por mais que alguns estejam preparados, a avaliação impõe condições e critérios que podem desestabilizar os nervos e principalmente os princípios dos candidatos, mesmo depois de classificados. As reações são inúmeras. Alguns ficam meio aéreos a viajar sem ler muito bem os enunciados, ou apenas pulando a leitura incômoda. Há quem sinta os instintos mais primitivos e quem perca o salto, a compostura e a vergonha. Muitos pedem cola, até levam as respostas na cueca. Cavalheiros distintos afundam em escândalos. Criam verdadeiros esquemas que acabam descobertos ou não, afinal de contas, o fiscal não é assim tão atento, ou imparcial, quanto diz.

O grande problema é que as opções são muitas, e nem sempre há garantia de que alguma esteja certa. Há perigo no óbvio e no complexo, mas principalmente nas generalizações. Se nenhuma das respostas anteriores foi correta, o melhor é apostar em algo novo. Provas antigas servem para se preparar mais não devem ser a base do estudo. A atenção deve ser redobrada com os cálculos e interpretações, “equívocos” acontecem sempre.

Na corrida por uma vaga mais prestigiada, o Brasil cometeu e comete muitos erros, torçamos para que não anulem os acertos. Cabe a população recorrer caso se sinta prejudicada. O funcionalismo público não deve ser excessivo, mas também não deve ser extinto. Cuidemos para que os políticos não percebam de repente que encolheram o Estado “por acidente”. Aproveitemos nossos dias úteis.

terça-feira, 15 de abril de 2008

'A Jornada é o Destino'*

Morrer para contar a história. Talvez não seja exatamente isso que os fotojornalistas de guerra tenham em mente. De que adianta dar a vida para levar imagens do terror a primeiras páginas e exposições mundo afora. Não se fotografa pelo cadáver, pelo ferido ou pelo faminto. Não se invade o íntimo do ser humano apenas para retratar seu sofrimento e sua decrepitude. A fotografia é pelo vivo, pelo ileso e pelo saudável. Morre-se para que a história não se repita.

Invade-se o íntimo daquele que observa. Incapaz de ignorar a intensidade da imagem, o homem a incorpora. Traz para si inevitáveis questionamentos. Algo já não é mais o mesmo. O choque de uma única foto pode permanecer por toda uma vida, traumatizar o ser humano que habita cada um de nós. A imagem congelada gela a espinha e divide a angústia. Investidos desse poder, os fotógrafos incentivam ações e ofuscam argumentações falaciosas, até mesmo os carrascos se constrangem.

Com apenas 22 anos, Dan Eldon tinha um objetivo tão nobre quanto pretensioso. Talvez tenha escolhido o pior laboratório para se formar profissionalmente. Não havia lucidez nem lógica, diante da Somália imersa em guerra e fome só era possível sentir compaixão ou ódio. Não cabia viver, apenas sobreviver ou morrer. Mas, talvez tenha escolhido o melhor.

Incumbido de uma humanidade sobre-humana, o jovem encantou quem o conheceu. Com alegria, respeito e sensibilidade, atravessou um cenário trágico em busca de fotos. Por mais que visse a morte nos vivos e lamentasse a vida dos mortos, mantinha a determinação. Tinha ciência de sua importância. Não era um carniceiro, por mais que chegasse bem perto com os closes, resguardava a dor e a intimidade dos modelos com cuidado.

Entregue aos senhores da guerra, aos vizinhos hostis e aos fanatismos, a população carecia de uma nação. A arbitrária fronteira traçada pelas potências caía por terra diante da miséria e da brutalidade. O mínimo de dignidade era desconhecido. Em suas curtas e árduas vidas, muitos nasceram e morreram sem ver um sistema pelo menos estável, em que as atrocidades não governassem a irracionalidade dos líderes. Poucos experimentavam a solidariedade, senão entre eles mesmos e os outros infortunados que transitavam pela Somália. Em sua curta estadia, Eldon se empenhou em não se ater somente às imagens, mas também ao objeto das fotos.

Preferia as crianças. Sensacionalismo? Não, reconhecia nelas um maior poder de persuasão. Traduzia o drama de um país em um olhar desesperançoso. Telepáticos, os olhos dominam as mentes de quem se aventura a encará-los. A serenidade mostra-se mais incisiva que o escândalo. A imagem, de fato, vale mais que mil palavras.

Contada por sua irmã, Amy Eldon, a história de Dan se tornou exemplo para o ativismo internacional. Morrendo para Contar a História é um documentário dramático e motivante, que deixa lições e seqüelas. Questiona-se a validade da guerra e ao mesmo tempo o poder do homem de combatê-la. Não há como ser indiferente.


Ao olhar tão de perto, os jornalistas não conseguem sair ilesos. “Sentem o cheiro da morte”. Impregnam-se dele. Sujam as mãos e limpam a alma, ou o contrário. Ao alimentar o circo da mídia, arriscam ver as fotos reduzidas a ilustrações, minimizadas por frases de impacto que escondem o que lhes é evidente. Muitos perdem a vida sem ganhar a causa. Expõem-se para promover a empresa, a paz ou a si mesmos. Heróis altruístas, loucos suicidas, ou monstros oportunistas? Nada disso, apenas jornalistas.


* Frase de Dan Eldon

(texto escrito como resenha para a disciplina de fotojornalismo na UFF)

domingo, 6 de abril de 2008

Quarto do Pânico

Crimes contra a criança são especialmente chocantes. Mexem com um ponto muito sensível na sociedade. Causam profundos sentimentos de compaixão, indignação, e forçam o imaginário a temer: “E se fosse meu filho?” Dominam as páginas da mídia, motivam manifestações e se transformam em grandes dramas nacionais. É assim que deve ser. Mas por que nem todas as crianças violentadas têm o espaço de João Hélio e Isabella Nardoni?

Solidarizo-me sinceramente pelas perdas de ambas as famílias. Revolto-me com a tamanha crueldade com que os dois casos transcorreram. Não compartilho da insensível opinião de quem não leva a sério o sofrimento da classe média. Mas ele não é o único. Por isso, prefiro não comentar a lamentável morte de Isabela para dar espaço à outra dramática história: a de L.

Talvez não se lembre, mas nesta semana a morte da menina paulista não foi a única monstruosidade veiculada pela mídia. O caso de L. R. S., de apenas 12 anos, chocou os policiais de Goiânia que a encontraram acorrentada e amordaçada em um apartamento da cidade. Silvia Cabresi Lima, empresária de 42 anos, mantinha a menina presa pelas mãos e pés, sem alcançar o chão, em um quatro trancado. A cobertura de luxo era usada como um verdadeiro campo de concentração, onde desumanidades psicóticas eram cometidas diariamente, há, pelo menos, 17 anos.

Com a chegada dos agentes da Polícia Civil, os olhos da menina ainda amordaçada se encheram de lágrimas. A policial que estarrecida se prontificou a soltar a prisioneira ficou ainda mais escandalizada ao perceber que a mordaça escondia uma gaze encharcada de pimenta. Assim que soltou a primeira mão, a menina se apressou em colocar o dedo na boca. Sussurrou: “cchhiiii, ela pode ouvir!” A agente pôde ver então as feridas nos dedinhos da menina, com unhas quebradas e pontas roxas. Ao ser questionada sobre os machucados, a garota se levantou e foi a um armário. Abriu a porta. Revelou-se então uma verdade inaceitável, absurda, segundo as palavras da policial. Ali estavam alicates e outros objetos usados nas sessões de tortura diárias, ainda manchados com o sangue da vítima.

Ao conversar com L. os policiais perceberam que sua língua também apresentava feridas. A resposta foi pavorosa. A empresária fazia cortes com alicate, e não satisfeita com a própria crueldade, puxava a garota pela casa, com a língua presa pela ferramenta. Conforme os depoimentos e perícias revelavam novas atrocidades, os investigadores ficavam ainda mais estupefatos. Os maus tratos incluíam colheres quentes na boca, surras, multilações, fome e humilhações.

Conivente, a empregada, Vanice Novaes, tentou impedir a entrada da polícia, mas teve de colaborar com a apuração. Contou aos policias que Silvia costumava fazer as sessões quando estava nervosa. A diabólica terapia trazia de volta a calma à empresária. Além das duas, também morava na casa a mãe de Silvia, de 82 anos, bem como o marido o filho, todos indiciados por conivência. Contudo, L. não era a primeira, outras vítimas já haviam passado pela masmorra, a mais velha delas com 21 anos, no momento. Como Silvia prendia tantas crianças sem ser denunciada?

Ela as comprava. Isso mesmo, comprava. Com promessas de uma vida melhor, tratamento médico e boas escolas, a degenerada empreendedora procurava famílias carentes do Estado. Desacreditados pela própria condição financeira, e muitas vezes tendo outros tantos filhos para criar, os pais aceitavam o dinheiro. É desconcertante ver até que ponto vai a barbaridade do plano.

O que será dessa menina? Após uma experiência traumática, ela não poderá contar com a mãe, que está sendo indiciada pela justiça. O pai ausente foi impedido pelos tribunais de obter a guarda da filha. Na delegacia, a agente que libertou L. contou que a garota demonstrava uma preocupação muito clara, o estado em que se encontrava a torturadora. “Ela está presa? Está sentada? Está comendo?” Uma criança de doze anos achava pequena a punição da criminosa, queria que o crime fosse pago com a mesma moeda, sofrimento e brutalidade. Não há como não ficar perplexo diante da violência psicológica que sofreu a menina.

Infelizmente, o caso não ganhou a devida veiculação. Na mesma semana, outro escândalo familiar na classe média superou a noticiabilidade de L. Ambas são crianças. Uma de cinco e uma de doze anos. O caso de Isabella tem agravantes, o principal suspeito é o pai e o seu corpo foi atirado do sexto andar de um prédio, mas o sofrimento de L. me parece mais sádico, se é que dor é algo que pode ser medido.

L. não pode ser identificada. Por medida judicial, o verdadeiro nome da criança está protegido. Seja ele Larissa, Lívia, Laura ou Lúcia, representa mais um capítulo do lívido quadro de crimes hediondos no Brasil, que desafia a lucidez. Lastimável.

Você que acompanha o blog deve ter sentido falta de figuras de linguagem e artifícios alegóricos ao ler o texto, ainda mais num tema tão sensível quanto violência na infância. Peço licença para dizer que não há o que florear, a história por si só já causa um impacto muito maior que o suficiente para chocar e instigar duras reflexões. Mais palavras seriam só palavras.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Alcatéia

Livros enfileirados acumulam poeira e decepção nas estantes. As páginas guardam palavras cujo efeito foi corroído pelas décadas, pelos dólares e pelas dúvidas. Barbas, mobilizações, hinos, bandeiras, todos ficaram nas fotos, e elas já não mais ocupam a mesa de centro. As gavetas conservam o que as mentes abdicaram. Os ídolos estão decrépitos, perderam-se no fracasso dos líderes. A juventude está velha. Será que idéias morrem?

Marcas de um futuro que poderia ter sido ainda preenchem discursos, mas esvaem-se na prática. Tudo o que era sólido se desmanchou no ar, restaram apenas vestígios. A evanescente ideologia de toda uma geração construiu uma retórica hoje vazia, que oscila entre o desequilíbrio, o populismo e o ridículo. O que houve com a esquerda? Os sonhos de uma sociedade mais justa e esclarecida foram comprados pelo vil metal. Mas nem todos partilhamos da ceia do lucro, fomos alienados pela mais-valia do voto. Desiludidos, mantemos os mesmos hábitos, as mesmas críticas a cada detalhe, a cada mensagem subliminar e explícita. Apocalípticos, amargamos na barbárie a vingança contra o capitalismo. O que se perdeu foi mais que a razão, foi a crença política, a credibilidade de nossos próprios ideais. Acreditar virou constrangimento.

A culpa não é do Lula. O socialismo deixou de ser um fenômeno e passou a ser um atraso em todo lugar. Não há espaço para a igualdade no mundo da eficiência, salve-se quem puder. No Brasil não poderia ser diferente, consumimos o que há de “melhor” na cultura ocidental. Os quase nova-iorquinos empresários de São Paulo não podem tolerar marxistas em sua política. A competitividade requer um governo capitalizado, com objetivos claros e metas pré-estabelecidas, reduzidas ao PIB. O Brasil tem que ser global.

Idéias tão pouco rentáveis quanto a coletividade não podem prosperar. A verdade é que faltou competência, organização, tecnologia e dinamismo na luta comunista. A revolução perdeu por não ser um bom negócio, por não ter uma equipe com know-how e MBAs suficientes. Eles venceram, não há mais lado de fora no capitalismo. Toda luta da Comuna de Paris, os sacrifício contra o facismo, as Revoluções Russa, Chinesa e Cubana, o movimento estudantil de 68. Já se foram 40 anos e ainda estamos aqui. Há saída?

Temos que aceitar que não é a que gostaríamos, mas o sistema pode ser mais justo e humano. Não adianta falar de quebra-quebra, inversão de pirâmide e fim do Estado. Não cabe mais defender o impalpável na construção de uma sociedade melhor. Contentar-se com o reformismo não é fácil, mas é preciso. Já que é impossível destruir os alicerces, dividamos melhor os cômodos. Adaptar-se não é se entregar nem trair, é não abandonar o objetivo primordial, abrindo mão dos pormenores. Insistir em uma mesma estratégia em um quadro mutável e instável é apegar-se, com toda a força, à derrota.

É claro que a adaptação necessária não passa, nem de longe, pela total corrupção da ideologia de esquerda, que culminou nas alianças infelizes do governo do PT. O Partido dos Trabalhadores defende os Senhores da Cana e os Bancos, e, por mais que investigue, despeja falcatruas na mídia em velocidade pós-moderna. Banalizou-se o escândalo. O assistencialismo é vital como forma de socorro, mas hoje, e sempre, é usado como cabresto na indústria da gratidão e da miséria. Não é mais uma questão de usar as armas da direita contra ela, o PT se tornou a direita, deitou-se com o PMDB, e deixou sem ação o PSDB e o PFL, e sem saber o que combatem ao certo – sim, insisto em chamar de PFL, e chamaria até de ARENA ou UDN se não prejudicasse o entendimento –. Não é dessa mudança de hábito que falo.

Se não podemos suprimir a competição, que pelo menos tenhamos igualdade de oportunidades. Escolas públicas de qualidade, atendimento médico digno para quem não pode pagar e infra-estrutura para todos. Não o mínimo, esqueça-o, pense no humano. Ainda que isso não garanta uma vida justa, seria dar uma chance para que se conquiste com o capitalismo o que foi inviável de outras formas. Limitar-se ao egoísmo e consumir os dias resmungando um passado de promessas não levará a lugar algum. Se o homem é o lobo do homem, formemos uma alcatéia.

“Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Ainda que eu não tenha feito nada.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Sem Favoritismos

Como intermediário financeiro, o banco é uma das instituições mais poderosas e fundamentais para a manutenção do estilo de vida da sociedade contemporânea. Grande parte do que se produz e do que se poupa vai parar nos espaços virtuais que concentram a esmagadora maioria da riqueza mundial. Mais que administradoras, essas corporações são detentoras e multiplicadoras de capital. O que pensar, então, da aprovação de um pacote emergencial de socorro a um dos maiores bancos americanos? Crise? Elementar meu caro Bush.

Nesta semana, o presidente americano deu mais uma prova da habilidade que possui para dialogar com a mídia. Poucos dias depois de o governo dos EUA destinar bilhões para a cobertura do rombo causado pela venda do Bears Stearns por um preço bem abaixo do mercado, Bush declarou que a crise financeira vivida pelo país não é grave. Obviamente, o poder de fogo do “war president” foi nulo.

O mercado entendeu imediatamente o que significa um governo republicano intervir na economia. Conservadores e defensores do neoliberalismo até as últimas conseqüências, os antecessores do texano não cederam a uma intervenção direta nem na crise de 29. Em um quadro de competição e busca pela otimização dos lucros, a participação do Fed na compra do quinto maior banco dos Estados Unidos é um fato preocupante. Um comportamento atípico na filosofia do capitalismo yankee.

O quarto colocado na lista pode ser a próxima vítima. O Lehman Brothers enfrenta dificuldades e já mostra que possivelmente anunciará mais prejuízos. A queda de 48% das ações, em um único dia, comprova. Desde que o Citigroup contabilizou perdas bilionárias no início do ano, grupos americanos e europeus tiveram seus lucros devastados pelo terremoto que se tornou a crise do subprime. Os EUA podem até não entrar em recessão, mas já é certo que a época das vacas gordas foi para o brégio. Parece que o capitalismo não tem favoritos.

Diante de um inimigo invisível, Bush treme. A única arma que pode usar agora é a competência. Ele não entende de sutilezas. Não se conforma com a impossibilidade de bombardear a crise e pronto. Invadir o território da economia é algo complexo demais para o presidente. Invocar o nome de Deus para pedir dinheiro também não vai ajudar, ele não concede empréstimos. Os EUA gastaram trilhões na guerra contra o terror, e agora tem mais um motivo para se aterrorizar.

No Brasil, Mantega e Lula apostam na segurança da economia nacional. Há ressalvas. Em um mundo de integração e interdependência financeira, é impossível afirmar até que ponto o aprofundamento da crise lá pode, ou não, estender-se do lado de cá. Por mais que não nos atinja diretamente, muitos países embarcarão na penúria. Provavelmente o enfraquecimento das exportações será o primeiro indício. Fuga de investimentos também deve ser esperada, ninguém investe em emergentes em um quadro de insegurança global.

Perdidos na própria cartilha, os americanos devem se perguntar como logo eles foram pegos pelas armadilhas do capitalismo. Tão competentes, qualificados, organizados e ambiciosos, porém agora diante de um problema que poderia ter se resolvido tão facilmente, caso a compulsão não transcendesse os limites lógicos. Ironicamente, foram derrubados pelo consumo, força que move sua economia e cultura. As compras compuseram a rotina, a ética, a moral e até o próprio território nacional. No país onde cidadão e consumidor são sinônimos, a dívida não é só com os bancos. A crise é de valores.

sábado, 8 de março de 2008

Xixi na cama

Nem sei porque os homens vão para a guerra. A natureza mostra que as verdadeiras guerreiras do mundo animal são as fêmeas, e a história comprova. “Cada vez mais unânime”, o feminismo se consolidou como uma das principais bandeiras da sociedade moderna. Resultado da luta de milhões de mulheres pelo direito de votar e ser votada, de empregar e ser empregada, e de ser e fazer quem quiser feliz. No entanto, hoje, algumas exigem um direito absolutamente controvertido, o de matar. Matar seus próprios filhos.

A lei brasileira classifica de homicídio doloso a investida intencional que resulta na inatividade encefálica de um indivíduo. Quer dizer, “matar por querer”. O delito ainda pode ser agravado por incapacidade de defesa, motivos repugnantes, ou por corresponder a resposta contra um ato desproporcionalmente pequeno, entre outros motivos. Armar uma emboscada para a vítima é outra forma de alongar a crueldade. Premeditar dá um caráter mais maquiavélico à trama.

Pois bem, imagine um bebê, que ocupa seu tempo “flutuando” no confortável e aconchegante ventre de sua mãe. Não importa se ele tem coração, pulmão, unhas ou apenas uma célula, já que terá tudo o que falta em uma questão de tempo.

Agora pense em um remédio, chá, pílula do dia seguinte, agulha de crochê, magia negra, ou o que seja. Quando a futura genitora decide que não mais dará a luz a sua “cria”, seja qual for a razão, ela não muda o fato de que o peso que será tirado da barriga será infinitamente multiplicado e lançado como um meteoro na consciência, pelo menos teoricamente. Ele estará completamente indefeso, visto que a pessoa que foi encarregada de protegê-lo decidiu dar cabo da tarefa. Qual seria o motivo da punição? E o que fez para merecê-la? Nasceu? Não, nem isso. Nenhum aborto induzido é feito sem querer, alguém teve a intenção de matar, nem que seja outra pessoa. Já que não é acidental nem ocasional, houve o mínimo de planejamento, pelo menos o necessário para chegar ao local do crime, e por em prática a cilada.

Percebeu? “Caracteriza-se então um homicídio quintuplamente qualificado”, pelo menos pelas leis morais. Uma verdadeira lenda no hall dos crimes hediondos. Um recorde que é fruto de trabalho de equipe e muito empenho. Com este invejável posto, uma mãe que o comete deixaria para trás Suzanne Von Richthofen, Beira-Mar, Champinha, Abadia, Al Capone, Maníaco do Parque e tantos outros “amadores” que ficariam degraus abaixo na qualificação criminosa. Nenhuma emboscada jamais será tão eficiente quanto o aborto.

Ainda assim, há quem argumente a favor. O aborto seria uma forma de evitar problemas financeiros maiores para a família? Seria, vender seus filhos também. Há quem diga que seria uma forma de conter a criminalidade. Genocídios idem, menos pessoas resultam em menos criminosos em potencial, nessa lógica. Talvez uma forma de preservar a adolescência das jovens que engravidam. Então por que diminuir a maioridade penal? Só é preso quem pode responder pelos próprios atos, não é verdade? Para os que dizem: “Ah... Em caso de estupro eu sou a favor...” Em caso de estupro já é legalizado.


De fato o aborto é uma solução rápida para muitos problemas que requerem esforços sobre-humanos para a política nacional. Planejar ações, adaptar orçamentos, direcionar investimentos, elaborar leis, votá-las, aplicá-las, fiscalizá-las, melhorar a gestão dos recursos, educar o povo, mudar valores da sociedade, aumentar o acesso a instrução. Trabalhos épicos, dignos de Hércules. É melhor dar um jeitinho, dizer que é questão de saúde pública e que pode ajudar no combate à violência. Chamar uns cientistas para dizer que o fato de se tornar um ser humano no futuro não constitui humanidade no presente. Afinal de contas, eles nem sentem dor.

Ao reivindicar o poder sobre o próprio corpo, a mulher se impõe sobre o mais elementar dos direitos, a vida, e ignora que outro corpo agora a divide com ela. Ser mãe é mais que gerar, que criar, que alimentar, amar ou qualquer outra forma de compreensão. É ter uma ligação estabelecida no ultra-som, na meia do enxoval, no primeiro chute e em todos os outros clichês que constroem o amor. A mulher que aborta, mata mais que o próprio filho, destrói sua maternidade, suas noites mal-dormidas, o xixi na cama, o primeiro dia de aula, febres, festas de aniversário, formaturas, casamento, netos... É o amor que ela aborta.


segunda-feira, 3 de março de 2008

A Conquista do Oeste

Há 443 anos, Estácio de Sá fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. 108 anos depois, Barcelos Domingos ergueu a Igreja do Desterro, marco da criação de Campo Grande. Hoje, um século de idade é pouco para o abismo existente entre as “duas cidades”, que insistem em ocupar o mesmo município. A mais nova prova da segregação entre as porções ocidental e oriental do território carioca foi o aniversário da capital, que não rendeu festas no bairro.

Com população de cidade de médio porte, Campo Grande ocupa uma área no município que equivale proporcionalmente a dos Estados de São Paulo e Minas Gerais juntos em relação ao Brasil. Mas não é novidade pra ninguém que os investimentos direcionados à região não correspondem a nenhum tipo de proporção. Faz-se uma obrinha aqui e outra ali apenas para que todo o bairro não desabe. Nem os braços abertos do cristo são para todos.

É absolutamente comum ouvir habitantes de áreas mais “centrais” do Rio questionarem se Campo Grande faz parte da cidade. Espantoso é que, uma vez ou outra, também se ouve o contrário, moradores desavisados que se surpreendem em descobrir que são cariocas. Talvez a distância os confunda, já que a viagem de trem que fazem até a Central do Brasil perde apenas em um quilômetro para a travessia do Canal da Mancha entre as cidades de Dover e Calais, via Eurotúnel.

Os 53km que separam a Arquidiocese de São Sebastião da Paróquia de Nossa Senhora do Desterro, no Centro do bairro, são suficientes para dar 15 voltas em torno de todo o território do Vaticano. Uma procissão impensável. “Comercialmente” falando, o famigerado Calçadão dista em linha reta da Cinelândia quase o dobro do comprimento da Ilha de Manhattan. O bastante para curar qualquer compulsão consumista.

Contrariando todas as expectativas geográficas, Campo Grande vive hoje um momento áureo de crescimento econômico. O bairro conta com um dos mais fortes centros comerciais do Estado. Abriga a maior fábrica de bebidas da América Latina, construída pela multinacional Ambev. Beneficia-se com a expansão da Michelin, que praticamente duplicou a área da imensa fábrica que possui em Guaratiba e pela formação do pólo industrial do Porto de Sepetiba. A nova área industrial captou investimentos milionários para a Zona Oeste nos últimos anos, rendendo frutos como a mais nova vizinha da região, a Companhia Siderúrgica do Atlântico.

Quanto mais saudável se torna um endereço, mais as pessoas querem se aproximar dele. O desenvolvimento financeiro atrai hoje a especulação imobiliária. A multiplicação de condomínios transbordou das áreas tradicionais da “Zona Sul” do bairro e hoje se espalha por lugares improváveis, como a Avenida Brasil. De acordo com dados da Associação Dirigente de Empresas do Mercado Imobiliário, Campo Grande foi responsável por 6% de todos os empreendimentos habitacionais de 2007, em uma cidade onde Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes perdem cada vez mais espaço.

Os motivos da procura são diversos. A segurança ainda é maior do que na Zona Norte, o trânsito é menor do que no centro, os preços são mais acessíveis do que na Zona Sul e na Barra, e a infra-estrutura é superior a dos bairros vizinhos.

O excesso de empolgação alimenta os antigos desejos de independência. Contudo, ressalvas devem ser feitas. A falta de identificação com a distante política carioca criou lideranças poderosas na região, que atingem votações expressivas em eleições para os Legislativos Municipal e Estadual. Algumas delas já lançam idéias de emancipação, que poderiam inserir Campo Grande no mapa. Separar-se não é a solução. Estabelecer um novo município só serviria para incluir a população na lista de cidades-dormitório da Baixada.

Conforme o desenvolvimento da cidade segue seu fluxo histórico em direção ao Oeste, a necessidade de planejamento e organização se mostra vital. Levar a “civilização” aos pontos mais distantes da cidade é uma promessa antiga, feita pelos portugueses que estabeleceram na região uma sesmaria. Muitos problemas precisam ser vencidos até a Zona Oeste seja realmente “conquistada”.

Os tempos de Faroeste estão ficando para trás, apesar do bang-bang estar cada vez mais próximo. As pacatas plantações de laranja que antes abrigavam cowboys se transformaram em terras onde a lei carece de xerifes. Assim como nos filmes do “velho oeste”, os primeiros passos vieram com as ferrovias, porém o tempo que passou desde então foi o bastante para degradar áreas que agora precisam ser revitalizadas e incorporadas à cidade. A integração entre Campo Grande e o Rio deve ser feita antes que o município fique "pequeno demais para os dois".



quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Desvio de Verbo

Existem coisas que o dinheiro não compra, mas para todas as outras funcionários de todos os escalões do governo têm abusado dos cartões corporativos. Desde que a Ministra da Inclusão Racial, Matilde Ribeiro, gastou uma nota preta, denúncias cada dia mais revoltantes tomaram conta das páginas dos jornais. De pirataria a hotéis de luxo, não houve pudor. Até uma CPI foi instaurada (como se aqui isso significasse alguma coisa). A disputa pelo controle das investigações só comprova que no Brasil o que não acaba em pizza vira circo. Aliás, o cartão pode ser usado nos dois casos.

O Ministério da Inclusão Social fez seu papel em abrir os olhos da sociedade para um fato, no mínimo, curioso: quando o assunto é corrupção, nenhum país é tão igualitário quanto o nosso. Há espaço para todos os níveis de escolaridade, hierárquicos e financeiros. Do segurança ao reitor, o desejo foi um só: dar a conta para o povo pagar.

Comprou-se de tudo, sem se importar com os preços. Na verdade, talvez tenha sido o contrário, quanto mais caro melhor. Imagino o trabalho que deu ao Magnífico Reitor da UnB encontrar uma lixeira de quase R$1 mil. Pelo menos agora tem onde jogar seu diploma com certa “dignidade”, visto que um reitor é o símbolo do conhecimento em uma sociedade, um verdadeiro avatar da inteligência. Posição que requer o mínimo de compostura, como vossa magnificência reconheceu, o que não quer dizer andar em um carro de R$70 mil pago pela Universidade. Taí, eis um cargo em que ainda depositava minha confiança.

À margem da apuração dos fatos ficará uma gorda parcela, usada para assuntos de segurança nacional. Penso que todos os gastos poderiam ter essa finalidade, se fossem empregados na reforma do sistema penitenciário, na fiscalização das fronteiras, no combate ao crime organizado ou na modernização das forças armadas. Se o segredo é de interesse público, muito mais público é o interesse pela verdade.

“Longe da corrupção”, o legislativo debate temas muito mais importantes. Enquanto a situação tenta tomar as rédeas da CPI, para implantar uma comissão do “bem”, a oposição faz discursos histéricos e chantagens demagogas para investir em uma nova cruzada contra a invicta popularidade de Lula. Ou teremos governistas se auto-flagelando com chicotes de algodão, ou opositores plantando bananeiras para a mídia. Vale lembrar que essa é uma das muitas formas que serão usadas para ganhar os holofotes em ano eleitoral. Como disse acima, existem coisas que o dinheiro não compra. Voto não é uma delas.

À medida que percebemos o quanto o Portal de Transparência é opaco, questiono o que ainda falta ser descoberto sobre a corrupção. Esse fenômeno patológico em nossa sociedade mostra-se cada vez mais uma epidemia. Já sabemos que é parte da cultura, que atinge todas as camadas sociais e que não faz distinção de gênero, etnia nem formação acadêmica. Está em todos os estados, desenvolve formas cada vez mais eficientes e algo me diz que se revela apenas quando é conveniente. Onipotente, onipresente e onisciente. Corrupção no Brasil é mais que hábito enraizado, é religião.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

'Fashion Week'

Celebridades, fatos não esperados, reviravoltas, polêmicas e estilo. Essa não foi a fashion week, mas bem que poderia ter sido. Parece que não foi só o relógio que acordou diferente no domingo, nos últimos sete dias vivenciamos momentos históricos – outros nem tanto – que podem representar indicações de quais serão as tendências das próximas estações. Vale a pena fazer um apanhado geral.

No Brasil, o verde está “out”. Pelo menos foi nisso que apostou a população de Tailândia, cidade paraense que impediu o início da apreensão de madeira ilegal da Amazônia, armazenada no município. Após demissões em massa, orquestradas pelas madeireiras para obrigar o povo a lutar por seus empregos, centenas de pessoas chegaram a incendiar um carro para barrar o comboio do Ibama. Já os ministros Tarso Genro e Marina Silva ficaram “beges” de espanto, e preferiram não comparecer.

Na terra de Gisele Bündchen, quem brilhou foi outro top, Lula, que finalmente pôde lançar mão do jargão “Nunca na história desse país” de forma adequada. O “vermelho” ficou para traz, e agora no “Azul”, somos credores. Só falta saber se será azul celeste, ou algum meio “água suja”.

Outro tom em alta é o azul petróleo, que atingiu os US$100 o barril, para a alegria de Hugo Chavez. Após batalha judicial contra a Exxon, o presidente venezuelano declarou que não pretende amarelar, e ameaçou os americanos, já que para eles muito mais negra que a fome, é a ausência de petróleo. Os latinos não pararam por aí. Na terra em que Hittler ascendeu ao poder, Capitão Nascimento virou herói e trouxe para casa o urso de ouro. A farda preta agora é ícone do cinema brasileiro, e ai dos “intelectualóides” que queiram questionar isso.

Os últimos dias mostraram que a camisa verde e amarela está para perder um dos mais ilustres usuários, Ronaldo. Apesar do esforço, o jogador deu sérios indícios de que jogará a toalha em breve. Quem não fará isso é Hillary, que ao ver seu fracasso cada dia mais iminente, se apega com mais força a bandeira rosa-choque. Já o afro-americano Obama escolheu um estilo alternativo – sem cordões de prata e super carros – e tem obtido resultados bem positivos. E ainda assim há quem se pergunte se os Estados Unidos estão prontos para um presidente negro.

Conservadores como sempre, os americanos mostraram que há algo em sua política que não sai de moda, o moralismo. Após ser pego com uma lobista, John McCain está de saia justa. Parece que a ala retrô do Partido Republicano vai ter que engolir mais este sapo se não quiser entregar os pontos.

Voltando ao Brasil, a antológica frase “há males que vêm para o bem” se fez valer novamente. Após a má-fé dos seguidores do Bispo Macedo mover céus e terras contra a mídia, algo de bom veio como resultado, um Ministro do Supremo anulou temporariamente a lei de imprensa. Em pleno século XXI a lei ainda permitia ações como recolhimento de jornais em caso de as edições ferirem a moral e os bons costumes. Coisas um tanto quanto anos 60.

Uma antiga conhecida do povo brasileiro tem ganhado uma cara nova, é a “repaginada” política do pão e circo, que parece se tornar cada dia mais “do circo, e tá bom”. O Timemania vai direcionar 22% dos recursos arrecadados com as apostas para clubes de futebol. Já a seguridade social ficará com apenas 1%. Em ano de eleição, deputados reforçam o novo look da velha política e garantem o maior aumento de verba por meio de emendas para os Ministérios do Turismo e dos Esportes, que têm apelo muito mais circense.

Uma moda que, pelo bem da humanidade, poderia pegar foi lançada pelo Kosovo. Após décadas de subordinação, Sarajevo afirmou sua autonomia com uma caneta e muita alegria. É uma pena que Belgrado e Moscou não tenham ficado muito satisfeitas. Em um ataque de pelancas, Putin chegou a ameaçar barrar a independência a força. Em protestos, a população sérvia atacou a embaixada americana e obrigou Bush a recuar com os diplomatas. Só falta saber o que a nova nação pretende fazer com as minorias étnicas.

Para o fim, o que houve de mais (in)esperado: a mudança de liderança na grife ideológica de Cuba. O antigo guru, Fidel Castro, passou o bastão sem que ninguém esperasse. Como um dos últimos mitos vivos do socialismo, Fidel é imprescindível para o equilíbrio na ilha do modo como ele se dá hoje. Após 49 anos no poder, o líder ficou um pouco fora de moda – apesar da jaqueta da Adidas – mas continua adorado pelos companheiros comunas. O país obteve muitas conquistas, ainda que com métodos controvertidos, porém afundou em uma crise. Agora é saber para que lado do Caribe Cuba boiará. Se entregará à tutela de Hugo Chavez, ou às incertezas de uma transição que irá muito além da política? Todo cuidado é pouco, já que não faltarão grandes marcas de olho na alta escolaridade e no baixo custo da mão-de-obra cubana.

Em uma indústria multi-bilionária como a da moda, mudanças se dão em um único dia, até com um simples acessório. Também é assim no mundo real. Em menos de 24 horas surgem novos paradigmas. Se espera que transformações durem anos, já deve estar um pouco antiquado. Portanto, não se surpreenda se tiver que renovar o seu armário de idéias em breve. Vestir camisas está em alta, mas o valor de suas cores vai muito além da estética. Responsabilidade social, meio ambiente, feminismo, ou seus antagônicos. Há quem as use por serem bonitinhas, e quem as repudie simplesmente pelo mesmo motivo. Ao escolher sua roupagem ideológica, reflita antes de cair no senso comum.

Cheios de pós-modernidades e síndromes de velocidade, vivemos hoje a Idade da Moda. Encare-a como quiser. Com um preto básico, que vai bem em qualquer situação, com um estilo próprio e independente de tendências, ou aderindo ao “in fashion”. Só não a ignore, pois em um mundo de aparências, você é o que veste. Isso é tudo.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

'A estação está cheia'

Muitos tentam explicar como é a sociedade. Apelam para explicações instintivas, genéticas, psicológicas e religiosas. Uns pensam que o homem é bom e é corrompido. Outros juram que deve ser controlado com firmeza. Há ainda quem diga que as influências externas o constroem, ou que cada um já nasce com uma índole, vinda “de berço”, do DNA, ou de outras vidas. Se nada disso é certo como é possível diagnosticar problemas sociais com tanta facilidade como fazemos hoje?

Quem não ouviu que a solução para o Brasil é a educação? Será? Conheço tantos homens desonestos e cultos. Ou que o único jeito é re-implantar a ditadura? Duvido, já tivemos o bastante disso para saber que não funciona. Pior, e quando dizem que a saída para a violência é matar os bandidos, para que sirvam de exemplo. Certamente, ignoram o fato de que a drástica diminuição da expectativa de vida que teríamos, caso entrássemos no submundo, já é do conhecimento de todos. Como vivemos uma democracia, cada um que pense o que quiser.

Pois bem, para mim a sociedade é como um trem, daqueles totalmente abarrotados que saem bem cedo de suas estações em direção à Central, carregados com muita mão-de-obra para mais um dia de palmatória. Parece estranho? Eu sei, mas não desista ainda. Esse trem partiria já lotado, e os passageiros se sentiriam de formas diferentes quanto isso. Então pensemos neles.

Um pequeno grupo estaria satisfeito. Seus representantes encontravam-se sentados em bancos com encosto, espaço para apoiar o braço e vista privilegiada para a janela. Estavam orgulhosos, já que chegaram mais cedo e conseguiram garantir os melhores lugares. “Esforçaram-se” para aquilo. Sentiam-se tão merecedores de seus assentos, que não o cederiam nem por um segundo para ninguém. É claro que alguns pediram para que seu lugar fosse guardado por amigos, mas isso não muda nada em suas cabeças. O máximo de incômodo que tinham, era o calor insuportável, mas atribuíam a culpa aos montes de infelizes amassados nos corredores, ou à empresa que não instalou ar condicionado nos vagões.

Porém, não eram os únicos a estar sentados. Um outro grupo estava bem ao lado, em cadeiras não tão confortáveis, mas boas o bastante para proporcionar uma viagem tranqüila. O mais importante para eles, era levantar. Não para ceder o lugar, mais para ocupar o lugar dos primeiros, já que estavam mais próximos das melhores cadeiras do que qualquer um. Tinham tanta vaidade quanto os anteriores, e a única coisa que desejavam era que eles saíssem. Almejavam tanto aquela posição, que não permitiriam que ninguém, se não eles, a ocupasse.

Havia ainda mais um tipo de cadeira. Não tinha encosto, vista para janela, e ficava praticamente sufocada dentro da multidão. Os ocupantes não podiam esticar as pernas, nem cruzá-las. No máximo, eram capazes de abaixar a cabeça e dormir. O que pensavam era bem simples: “pelo menos estou sentado”. Mas, estavam tão próximos dos “desalentados” que não podiam deixar de ter compaixão e pedir para que deixassem carregar as bolsas. Faziam isso com muito mais freqüência que os demais.

A esmagadora maioria se esmagava nos corredores. Eram tantos, que não tinham consciência da quantidade que os acompanhava. O calor ali era mais intenso. O balançar do trem era mais intenso. A pressa de desembarcar era mais intensa. A posição desconfortável obrigava que se encostassem. Os encontros mais pareciam batalhas, com cotoveladas, joelhadas e pisões. Tudo por um mínimo espaço para se pendurar ou colocar os pés. Qualquer freiada, abrupta ou não, formava verdadeiras ondas de inércia, que massacravam todos, um a um. Apesar de olharem com certa inveja para quem dormia sentado, odiavam uns aos outros, pois acreditavam que eram os responsáveis pela situação. Eram desunidos. Não lembravam, porém, que a concessionária deveria garantir lugar para todos, já que todos os dias tomavam o mesmo trem.

Muitas idéias com certeza surgiriam para solucionar o problema. Um rodízio de lugares, provavelmente, seria a primeira delas. Contudo, aqueles que estavam sentados, principalmente os dos melhores lugares, criariam argumentos “plausíveis” para demonstrar que dividir não é a melhor medida. Se algum sistema de revezamento começasse, seriam capazes até de sabotá-lo. Convenceriam os outros de que aquilo era justo, e que poderiam sentar se chegassem mais cedo. Mentira, não havia lugar para todos. Entre os que estavam de pé, os mais radicais planejariam destruir o trem, para que todos embarcassem em outro, começassem do zero. Mais uma vez, quem tivesse o mínimo de conforto jamais concordaria, visto que o risco de ficar de pé, caso mudassem o trem, era bem maior. E mesmo quem não tinha lugar, quando conseguisse sentar, não aceitaria mudança, pois já estava acomodado.

Alguns seriam tomados pela revolta e até agrediriam os demais. Contaminados pelo mesmo sentimento, os passageiros iriam puni-lo de formas desumanas, coisas que não fariam se não estivessem imersos na selvageria. Alguns mais “visionários” aprenderiam a ganhar dinheiro em meio à crise. Venderiam lugares, alugariam por um tempo, e formas cada vez mais sofisticadas de se aproveitar do sofrimento alheio apareceriam. Para disfarçar o problema, a empresa até poderia oferecer lugares em bancos de plástico, já que mais conforto era urgente. Mas talvez o faria para ter maior aprovação.

Como resolver todo o impasse? A forma só poderia ser encontrada quando cada um dos grupos decidisse que todos deveriam ter lugares. Iguais ou não, que pelo menos permitissem que um trabalhador chegasse descansado e com dignidade em seu destino. Bom, você está se perguntado o que esse texto quer dizer? Se está, talvez esteja interessado demais em “conseguir sentar”, ou acordar cedo para defender seu lugar. Se entendeu e não concorda, já deve estar sentado. Mas se está de acordo, que tal convencer uns amigos a construir um novo trem? A estação está cheia.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

César Maia implementa Lei da Atração

Todos os grandes homens, ao longo da história, conheceram o segredo, Isaack Newton, Leonardo Da Vinci, Albert Einstein, Alexander Graham Bell, César Maia... Ôpa! César Maia? Ele pode não ser uma das maiores personalidades da humanidade, mas já provou que é um dos maiores adeptos do segredo. Por quê? Vejamos.

O completo caos na saúde carioca é rotina há algum tempo. A violência atinge níveis cada vez mais próximos de guerras. O trânsito mata mais e mais, e a Avenida Brasil, administrada pela Prefeitura, é a campeã em número de acidentes, com cerca de dois mil no ano passado, contra apenas 400 da segunda colocada. A conservação urbana é precária, e protestos como os do boicote ao IPTU estouram na imprensa. Nem é preciso dizer mais para saber que o Rio não anda muito bem das pernas, mas não é isso que pensa nosso Prefeito.

Em reportagem do Globo esta semana, foi revelado o custo da obra que entrará para a história dos monumentos “faraônicos” do Brasil, A Cidade da Música Roberto Marinho. Mesmo com todos os problemas enfrentados pela ausência de serviços básicos, o orçamento de 2008 terá 60% de sua verba para obras destinadas a um só endereço, "Cebolão", Barra da Tijuca.

Talvez a opção reflita os ensinamentos do best-seller absoluto entre os “auto-ajudas”, O Segredo, de Rhonda Byrne. Se for o caso, foi aplicada a lei que finalmente solucionará o que quatro Constituições e infinitas emendas não conseguiram, a Lei da Atração. Com um pouco de otimismo e muita imaginação, segundo a autora, é possível atingir qualquer objetivo. “É só acreditar que já conseguiu”, e bingo, “seu desejo é uma ordem”. Parece então que o Rio de Janeiro que César Maia governa é uma mentalização em que nossas necessidades foram supridas e podemos nos dar ao luxo de construir tamanha proeza.

Tiroteio no alemão? Mentaliza. Boicote ao IPTU? Mentaliza. Filas nas emergências? Mentaliza. Não há limites para o que se pode conseguir com o poder de sua mente. Se bem que isso não é novidade na Prefeitura, visto que já está na educação há um bom tempo. Aluno reprovado? Mentaliza. Aprovado!

Não que eu seja contra a cultura. Muito pelo contrário, é louvável o incentivo à promoção cultural que um complexo de alto nível como esse gera. Nesse aspecto, tiro o chapéu para César Maia. Mas quem irá freqüentar a Cidade da Música? Com certeza não serão os que esperam atendimento nos hospitais, nem os que são atingidos por balas perdidas ou achadas. A orquestra que ouvirão será a própria família em prantos nos enterros. Ou melhor, nem essa.

O dinheiro empregado para concluir a obra poderia ter sido usado para construir cinco hospitais de grande porte, ou uma via expressa como a linha amarela, com folga. Despoluiria as lagoas da Barra. Reconstruiria o Engenhão. Não que precisemos de outro, mas até o Pan já está comendo poeira. Mas que bobeira a minha, fico contando miséria. O certo é pensar em abundância. Imaginar que temos dinheiro para o que bem entendemos, assim receberemos mais. Vide o próprio prefeito que começou avaliando a obra em R$88 milhões e já conseguiu R$461,5 mi.

Fico pensando qual será o destino do orçamento de 2009? Que tal uma Cidade do Funk para acompanhar a do Samba? Até achei o sambódromo pequeno esse ano, um maior cairia bem. Cidade do Pagode, da Cerveja. Bom seria se fosse usado para construir a tal “Cidade Maravilhosa”.