terça-feira, 15 de abril de 2008

'A Jornada é o Destino'*

Morrer para contar a história. Talvez não seja exatamente isso que os fotojornalistas de guerra tenham em mente. De que adianta dar a vida para levar imagens do terror a primeiras páginas e exposições mundo afora. Não se fotografa pelo cadáver, pelo ferido ou pelo faminto. Não se invade o íntimo do ser humano apenas para retratar seu sofrimento e sua decrepitude. A fotografia é pelo vivo, pelo ileso e pelo saudável. Morre-se para que a história não se repita.

Invade-se o íntimo daquele que observa. Incapaz de ignorar a intensidade da imagem, o homem a incorpora. Traz para si inevitáveis questionamentos. Algo já não é mais o mesmo. O choque de uma única foto pode permanecer por toda uma vida, traumatizar o ser humano que habita cada um de nós. A imagem congelada gela a espinha e divide a angústia. Investidos desse poder, os fotógrafos incentivam ações e ofuscam argumentações falaciosas, até mesmo os carrascos se constrangem.

Com apenas 22 anos, Dan Eldon tinha um objetivo tão nobre quanto pretensioso. Talvez tenha escolhido o pior laboratório para se formar profissionalmente. Não havia lucidez nem lógica, diante da Somália imersa em guerra e fome só era possível sentir compaixão ou ódio. Não cabia viver, apenas sobreviver ou morrer. Mas, talvez tenha escolhido o melhor.

Incumbido de uma humanidade sobre-humana, o jovem encantou quem o conheceu. Com alegria, respeito e sensibilidade, atravessou um cenário trágico em busca de fotos. Por mais que visse a morte nos vivos e lamentasse a vida dos mortos, mantinha a determinação. Tinha ciência de sua importância. Não era um carniceiro, por mais que chegasse bem perto com os closes, resguardava a dor e a intimidade dos modelos com cuidado.

Entregue aos senhores da guerra, aos vizinhos hostis e aos fanatismos, a população carecia de uma nação. A arbitrária fronteira traçada pelas potências caía por terra diante da miséria e da brutalidade. O mínimo de dignidade era desconhecido. Em suas curtas e árduas vidas, muitos nasceram e morreram sem ver um sistema pelo menos estável, em que as atrocidades não governassem a irracionalidade dos líderes. Poucos experimentavam a solidariedade, senão entre eles mesmos e os outros infortunados que transitavam pela Somália. Em sua curta estadia, Eldon se empenhou em não se ater somente às imagens, mas também ao objeto das fotos.

Preferia as crianças. Sensacionalismo? Não, reconhecia nelas um maior poder de persuasão. Traduzia o drama de um país em um olhar desesperançoso. Telepáticos, os olhos dominam as mentes de quem se aventura a encará-los. A serenidade mostra-se mais incisiva que o escândalo. A imagem, de fato, vale mais que mil palavras.

Contada por sua irmã, Amy Eldon, a história de Dan se tornou exemplo para o ativismo internacional. Morrendo para Contar a História é um documentário dramático e motivante, que deixa lições e seqüelas. Questiona-se a validade da guerra e ao mesmo tempo o poder do homem de combatê-la. Não há como ser indiferente.


Ao olhar tão de perto, os jornalistas não conseguem sair ilesos. “Sentem o cheiro da morte”. Impregnam-se dele. Sujam as mãos e limpam a alma, ou o contrário. Ao alimentar o circo da mídia, arriscam ver as fotos reduzidas a ilustrações, minimizadas por frases de impacto que escondem o que lhes é evidente. Muitos perdem a vida sem ganhar a causa. Expõem-se para promover a empresa, a paz ou a si mesmos. Heróis altruístas, loucos suicidas, ou monstros oportunistas? Nada disso, apenas jornalistas.


* Frase de Dan Eldon

(texto escrito como resenha para a disciplina de fotojornalismo na UFF)

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