segunda-feira, 21 de abril de 2008

– Querida, encolhi o Estado!

A despeito do fim da CPMF, em todas as esferas governamentais a oferta de cargos públicos só cresce. Das longínguas Prefeituras às mais altas cúpulas do Judiciário, editais convocam todos os níveis de escolaridade a partilhar o bolo estatal. Do Banco do Brasil de São Paulo, à Caixa Econômica do Acre. Supremos, os tribunais julgam procedente o aumento quantitativo de folhas de pagamento. As reprovadas gestões que perdiam pontos pela baixa qualidade dos mandatos recuperam a imagem abrindo vagas sem preencher as lacunas dos serviços prestados à população. O Brasil parece ter minimizado a questionável adesão ao conceito de Estado Mínimo. Será?

Teoricamente, o oposto deveria acontecer. Após conhecer as maravilhas da abertura de mercado, a população deveria almejar sucesso nas grandes empresas privadas. Contudo, grande parte da sociedade opta hoje pelo antes tão criticado Estado Paternalista. Muito menos empreendedor que o exigido pelo sistema, o brasileiro busca acima de tudo a estabilidade, ainda que com salários menores e funções menos prestigiadas.

A tranqüilidade se sobrepõe então a insana busca pelo sucesso. A alternativa é muito mais lógica. A exploração de mão-de-obra, desvalorizada com crescente exército de reserva, levou a percepção de que a competitividade é um risco para o homem competitivo e reduz sua vida a um só objetivo: qualificar-se. O desejo por salários cada vez maiores continua, mas agora saber que o pagamento estará lá nos próximos anos é mais importante. Talvez a busca seja pela manutenção do poder de consumo, e não pela felicidade em outras áreas da vida, mas é fato que um novo paradigma de sucesso se cristalizou na sociedade.

O brasileiro do início do século XXI prefere ser um burocrata a trabalhar em escalas desumanas de horas-extras, feriados e fins de semana. Dificilmente se encontra alguém que não trocaria sua “possibilidade de crescer com a empresa” por uma pequena carga horária com benefícios, ainda que com salários menores. De que adianta vestir a camisa da companhia se ela não se compromete a vestir a sua?

Astuto, o capitalismo obviamente já encontrou uma forma de se beneficiar com a nova demanda. O mercado de cursos preparatórios ostenta hoje uma gorda participação no setor terciário. Empreendedores gabaritados promovem a nova ideologia, e os questionamentos da “quadrada” ideologia neoliberal parecem ter sido apaziguados. A esquerda pró-estatal ganhou um aliado na luta contra a terceirização dos serviços públicos. Um aliado que na verdade apóia apenas o próprio bolso. Aumentar o estado agora é lucro.

Menos lembradas, as administradoras privadas também têm muito que comemorar. Dificilmente um órgão oferece vagas sem antes contratar uma firma privada para organizar a seleção. O montante de divisas engorda com a demanda por vagas. Os serviços oferecidos vão desde provas a correções e classificações. É preciso estar atento à eficiência da fiscalização.

Conforme os gastos com pagamento de salários crescem, o governo usa mais uma vez o emprego como arma eleitoral. Como ano de eleições municipais, 2008 promete abrir concursos da Prefeitura de Oiapoque à Câmara de Chuí. Apesar do uso deliberado do dinheiro público, o Estado de fato tem o dever de garantir a oferta de empregos. Isso não quer dizer contratar todos os desempregados. Há um ponto de equilíbrio entre a Dama e a Cortina de Ferro que não fundirá os cofres nacionais e, por tabela, os nossos bolsos.

Postos à prova, os governantes tem apenas quatro anos de duração para responder a inúmeras questões. As indisciplinas são muitas, já que o programa não é assim tão claro. Por mais que alguns estejam preparados, a avaliação impõe condições e critérios que podem desestabilizar os nervos e principalmente os princípios dos candidatos, mesmo depois de classificados. As reações são inúmeras. Alguns ficam meio aéreos a viajar sem ler muito bem os enunciados, ou apenas pulando a leitura incômoda. Há quem sinta os instintos mais primitivos e quem perca o salto, a compostura e a vergonha. Muitos pedem cola, até levam as respostas na cueca. Cavalheiros distintos afundam em escândalos. Criam verdadeiros esquemas que acabam descobertos ou não, afinal de contas, o fiscal não é assim tão atento, ou imparcial, quanto diz.

O grande problema é que as opções são muitas, e nem sempre há garantia de que alguma esteja certa. Há perigo no óbvio e no complexo, mas principalmente nas generalizações. Se nenhuma das respostas anteriores foi correta, o melhor é apostar em algo novo. Provas antigas servem para se preparar mais não devem ser a base do estudo. A atenção deve ser redobrada com os cálculos e interpretações, “equívocos” acontecem sempre.

Na corrida por uma vaga mais prestigiada, o Brasil cometeu e comete muitos erros, torçamos para que não anulem os acertos. Cabe a população recorrer caso se sinta prejudicada. O funcionalismo público não deve ser excessivo, mas também não deve ser extinto. Cuidemos para que os políticos não percebam de repente que encolheram o Estado “por acidente”. Aproveitemos nossos dias úteis.

terça-feira, 15 de abril de 2008

'A Jornada é o Destino'*

Morrer para contar a história. Talvez não seja exatamente isso que os fotojornalistas de guerra tenham em mente. De que adianta dar a vida para levar imagens do terror a primeiras páginas e exposições mundo afora. Não se fotografa pelo cadáver, pelo ferido ou pelo faminto. Não se invade o íntimo do ser humano apenas para retratar seu sofrimento e sua decrepitude. A fotografia é pelo vivo, pelo ileso e pelo saudável. Morre-se para que a história não se repita.

Invade-se o íntimo daquele que observa. Incapaz de ignorar a intensidade da imagem, o homem a incorpora. Traz para si inevitáveis questionamentos. Algo já não é mais o mesmo. O choque de uma única foto pode permanecer por toda uma vida, traumatizar o ser humano que habita cada um de nós. A imagem congelada gela a espinha e divide a angústia. Investidos desse poder, os fotógrafos incentivam ações e ofuscam argumentações falaciosas, até mesmo os carrascos se constrangem.

Com apenas 22 anos, Dan Eldon tinha um objetivo tão nobre quanto pretensioso. Talvez tenha escolhido o pior laboratório para se formar profissionalmente. Não havia lucidez nem lógica, diante da Somália imersa em guerra e fome só era possível sentir compaixão ou ódio. Não cabia viver, apenas sobreviver ou morrer. Mas, talvez tenha escolhido o melhor.

Incumbido de uma humanidade sobre-humana, o jovem encantou quem o conheceu. Com alegria, respeito e sensibilidade, atravessou um cenário trágico em busca de fotos. Por mais que visse a morte nos vivos e lamentasse a vida dos mortos, mantinha a determinação. Tinha ciência de sua importância. Não era um carniceiro, por mais que chegasse bem perto com os closes, resguardava a dor e a intimidade dos modelos com cuidado.

Entregue aos senhores da guerra, aos vizinhos hostis e aos fanatismos, a população carecia de uma nação. A arbitrária fronteira traçada pelas potências caía por terra diante da miséria e da brutalidade. O mínimo de dignidade era desconhecido. Em suas curtas e árduas vidas, muitos nasceram e morreram sem ver um sistema pelo menos estável, em que as atrocidades não governassem a irracionalidade dos líderes. Poucos experimentavam a solidariedade, senão entre eles mesmos e os outros infortunados que transitavam pela Somália. Em sua curta estadia, Eldon se empenhou em não se ater somente às imagens, mas também ao objeto das fotos.

Preferia as crianças. Sensacionalismo? Não, reconhecia nelas um maior poder de persuasão. Traduzia o drama de um país em um olhar desesperançoso. Telepáticos, os olhos dominam as mentes de quem se aventura a encará-los. A serenidade mostra-se mais incisiva que o escândalo. A imagem, de fato, vale mais que mil palavras.

Contada por sua irmã, Amy Eldon, a história de Dan se tornou exemplo para o ativismo internacional. Morrendo para Contar a História é um documentário dramático e motivante, que deixa lições e seqüelas. Questiona-se a validade da guerra e ao mesmo tempo o poder do homem de combatê-la. Não há como ser indiferente.


Ao olhar tão de perto, os jornalistas não conseguem sair ilesos. “Sentem o cheiro da morte”. Impregnam-se dele. Sujam as mãos e limpam a alma, ou o contrário. Ao alimentar o circo da mídia, arriscam ver as fotos reduzidas a ilustrações, minimizadas por frases de impacto que escondem o que lhes é evidente. Muitos perdem a vida sem ganhar a causa. Expõem-se para promover a empresa, a paz ou a si mesmos. Heróis altruístas, loucos suicidas, ou monstros oportunistas? Nada disso, apenas jornalistas.


* Frase de Dan Eldon

(texto escrito como resenha para a disciplina de fotojornalismo na UFF)

domingo, 6 de abril de 2008

Quarto do Pânico

Crimes contra a criança são especialmente chocantes. Mexem com um ponto muito sensível na sociedade. Causam profundos sentimentos de compaixão, indignação, e forçam o imaginário a temer: “E se fosse meu filho?” Dominam as páginas da mídia, motivam manifestações e se transformam em grandes dramas nacionais. É assim que deve ser. Mas por que nem todas as crianças violentadas têm o espaço de João Hélio e Isabella Nardoni?

Solidarizo-me sinceramente pelas perdas de ambas as famílias. Revolto-me com a tamanha crueldade com que os dois casos transcorreram. Não compartilho da insensível opinião de quem não leva a sério o sofrimento da classe média. Mas ele não é o único. Por isso, prefiro não comentar a lamentável morte de Isabela para dar espaço à outra dramática história: a de L.

Talvez não se lembre, mas nesta semana a morte da menina paulista não foi a única monstruosidade veiculada pela mídia. O caso de L. R. S., de apenas 12 anos, chocou os policiais de Goiânia que a encontraram acorrentada e amordaçada em um apartamento da cidade. Silvia Cabresi Lima, empresária de 42 anos, mantinha a menina presa pelas mãos e pés, sem alcançar o chão, em um quatro trancado. A cobertura de luxo era usada como um verdadeiro campo de concentração, onde desumanidades psicóticas eram cometidas diariamente, há, pelo menos, 17 anos.

Com a chegada dos agentes da Polícia Civil, os olhos da menina ainda amordaçada se encheram de lágrimas. A policial que estarrecida se prontificou a soltar a prisioneira ficou ainda mais escandalizada ao perceber que a mordaça escondia uma gaze encharcada de pimenta. Assim que soltou a primeira mão, a menina se apressou em colocar o dedo na boca. Sussurrou: “cchhiiii, ela pode ouvir!” A agente pôde ver então as feridas nos dedinhos da menina, com unhas quebradas e pontas roxas. Ao ser questionada sobre os machucados, a garota se levantou e foi a um armário. Abriu a porta. Revelou-se então uma verdade inaceitável, absurda, segundo as palavras da policial. Ali estavam alicates e outros objetos usados nas sessões de tortura diárias, ainda manchados com o sangue da vítima.

Ao conversar com L. os policiais perceberam que sua língua também apresentava feridas. A resposta foi pavorosa. A empresária fazia cortes com alicate, e não satisfeita com a própria crueldade, puxava a garota pela casa, com a língua presa pela ferramenta. Conforme os depoimentos e perícias revelavam novas atrocidades, os investigadores ficavam ainda mais estupefatos. Os maus tratos incluíam colheres quentes na boca, surras, multilações, fome e humilhações.

Conivente, a empregada, Vanice Novaes, tentou impedir a entrada da polícia, mas teve de colaborar com a apuração. Contou aos policias que Silvia costumava fazer as sessões quando estava nervosa. A diabólica terapia trazia de volta a calma à empresária. Além das duas, também morava na casa a mãe de Silvia, de 82 anos, bem como o marido o filho, todos indiciados por conivência. Contudo, L. não era a primeira, outras vítimas já haviam passado pela masmorra, a mais velha delas com 21 anos, no momento. Como Silvia prendia tantas crianças sem ser denunciada?

Ela as comprava. Isso mesmo, comprava. Com promessas de uma vida melhor, tratamento médico e boas escolas, a degenerada empreendedora procurava famílias carentes do Estado. Desacreditados pela própria condição financeira, e muitas vezes tendo outros tantos filhos para criar, os pais aceitavam o dinheiro. É desconcertante ver até que ponto vai a barbaridade do plano.

O que será dessa menina? Após uma experiência traumática, ela não poderá contar com a mãe, que está sendo indiciada pela justiça. O pai ausente foi impedido pelos tribunais de obter a guarda da filha. Na delegacia, a agente que libertou L. contou que a garota demonstrava uma preocupação muito clara, o estado em que se encontrava a torturadora. “Ela está presa? Está sentada? Está comendo?” Uma criança de doze anos achava pequena a punição da criminosa, queria que o crime fosse pago com a mesma moeda, sofrimento e brutalidade. Não há como não ficar perplexo diante da violência psicológica que sofreu a menina.

Infelizmente, o caso não ganhou a devida veiculação. Na mesma semana, outro escândalo familiar na classe média superou a noticiabilidade de L. Ambas são crianças. Uma de cinco e uma de doze anos. O caso de Isabella tem agravantes, o principal suspeito é o pai e o seu corpo foi atirado do sexto andar de um prédio, mas o sofrimento de L. me parece mais sádico, se é que dor é algo que pode ser medido.

L. não pode ser identificada. Por medida judicial, o verdadeiro nome da criança está protegido. Seja ele Larissa, Lívia, Laura ou Lúcia, representa mais um capítulo do lívido quadro de crimes hediondos no Brasil, que desafia a lucidez. Lastimável.

Você que acompanha o blog deve ter sentido falta de figuras de linguagem e artifícios alegóricos ao ler o texto, ainda mais num tema tão sensível quanto violência na infância. Peço licença para dizer que não há o que florear, a história por si só já causa um impacto muito maior que o suficiente para chocar e instigar duras reflexões. Mais palavras seriam só palavras.