Crimes contra a criança são especialmente chocantes. Mexem com um ponto muito sensível na sociedade. Causam profundos sentimentos de compaixão, indignação, e forçam o imaginário a temer: “E se fosse meu filho?” Dominam as páginas da mídia, motivam manifestações e se transformam em grandes dramas nacionais. É assim que deve ser. Mas por que nem todas as crianças violentadas têm o espaço de João Hélio e Isabella Nardoni?
Solidarizo-me sinceramente pelas perdas de ambas as famílias. Revolto-me com a tamanha crueldade com que os dois casos transcorreram. Não compartilho da insensível opinião de quem não leva a sério o sofrimento da classe média. Mas ele não é o único. Por isso, prefiro não comentar a lamentável morte de Isabela para dar espaço à outra dramática história: a de L.
Talvez não se lembre, mas nesta semana a morte da menina paulista não foi a única monstruosidade veiculada pela mídia. O caso de L. R. S., de apenas 12 anos, chocou os policiais de Goiânia que a encontraram acorrentada e amordaçada em um apartamento da cidade. Silvia Cabresi Lima, empresária de 42 anos, mantinha a menina presa pelas mãos e pés, sem alcançar o chão, em um quatro trancado. A cobertura de luxo era usada como um verdadeiro campo de concentração, onde desumanidades psicóticas eram cometidas diariamente, há, pelo menos, 17 anos.
Com a chegada dos agentes da Polícia Civil, os olhos da menina ainda amordaçada se encheram de lágrimas. A policial que estarrecida se prontificou a soltar a prisioneira ficou ainda mais escandalizada ao perceber que a mordaça escondia uma gaze encharcada de pimenta. Assim que soltou a primeira mão, a menina se apressou em colocar o dedo na boca. Sussurrou: “cchhiiii, ela pode ouvir!” A agente pôde ver então as feridas nos dedinhos da menina, com unhas quebradas e pontas roxas. Ao ser questionada sobre os machucados, a garota se levantou e foi a um armário. Abriu a porta. Revelou-se então uma verdade inaceitável, absurda, segundo as palavras da policial. Ali estavam alicates e outros objetos usados nas sessões de tortura diárias, ainda manchados com o sangue da vítima.
Ao conversar com L. os policiais perceberam que sua língua também apresentava feridas. A resposta foi pavorosa. A empresária fazia cortes com alicate, e não satisfeita com a própria crueldade, puxava a garota pela casa, com a língua presa pela ferramenta. Conforme os depoimentos e perícias revelavam novas atrocidades, os investigadores ficavam ainda mais estupefatos. Os maus tratos incluíam colheres quentes na boca, surras, multilações, fome e humilhações.
Conivente, a empregada, Vanice Novaes, tentou impedir a entrada da polícia, mas teve de colaborar com a apuração. Contou aos policias que Silvia costumava fazer as sessões quando estava nervosa. A diabólica terapia trazia de volta a calma à empresária. Além das duas, também morava na casa a mãe de Silvia, de 82 anos, bem como o marido o filho, todos indiciados por conivência. Contudo, L. não era a primeira, outras vítimas já haviam passado pela masmorra, a mais velha delas com 21 anos, no momento. Como Silvia prendia tantas crianças sem ser denunciada?
Ela as comprava. Isso mesmo, comprava. Com promessas de uma vida melhor, tratamento médico e boas escolas, a degenerada empreendedora procurava famílias carentes do Estado. Desacreditados pela própria condição financeira, e muitas vezes tendo outros tantos filhos para criar, os pais aceitavam o dinheiro. É desconcertante ver até que ponto vai a barbaridade do plano.
O que será dessa menina? Após uma experiência traumática, ela não poderá contar com a mãe, que está sendo indiciada pela justiça. O pai ausente foi impedido pelos tribunais de obter a guarda da filha. Na delegacia, a agente que libertou L. contou que a garota demonstrava uma preocupação muito clara, o estado em que se encontrava a torturadora. “Ela está presa? Está sentada? Está comendo?” Uma criança de doze anos achava pequena a punição da criminosa, queria que o crime fosse pago com a mesma moeda, sofrimento e brutalidade. Não há como não ficar perplexo diante da violência psicológica que sofreu a menina.
Infelizmente, o caso não ganhou a devida veiculação. Na mesma semana, outro escândalo familiar na classe média superou a noticiabilidade de L. Ambas são crianças. Uma de cinco e uma de doze anos. O caso de Isabella tem agravantes, o principal suspeito é o pai e o seu corpo foi atirado do sexto andar de um prédio, mas o sofrimento de L. me parece mais sádico, se é que dor é algo que pode ser medido.
L. não pode ser identificada. Por medida judicial, o verdadeiro nome da criança está protegido. Seja ele Larissa, Lívia, Laura ou Lúcia, representa mais um capítulo do lívido quadro de crimes hediondos no Brasil, que desafia a lucidez. Lastimável.
Você que acompanha o blog deve ter sentido falta de figuras de linguagem e artifícios alegóricos ao ler o texto, ainda mais num tema tão sensível quanto violência na infância. Peço licença para dizer que não há o que florear, a história por si só já causa um impacto muito maior que o suficiente para chocar e instigar duras reflexões. Mais palavras seriam só palavras.
Solidarizo-me sinceramente pelas perdas de ambas as famílias. Revolto-me com a tamanha crueldade com que os dois casos transcorreram. Não compartilho da insensível opinião de quem não leva a sério o sofrimento da classe média. Mas ele não é o único. Por isso, prefiro não comentar a lamentável morte de Isabela para dar espaço à outra dramática história: a de L.
Talvez não se lembre, mas nesta semana a morte da menina paulista não foi a única monstruosidade veiculada pela mídia. O caso de L. R. S., de apenas 12 anos, chocou os policiais de Goiânia que a encontraram acorrentada e amordaçada em um apartamento da cidade. Silvia Cabresi Lima, empresária de 42 anos, mantinha a menina presa pelas mãos e pés, sem alcançar o chão, em um quatro trancado. A cobertura de luxo era usada como um verdadeiro campo de concentração, onde desumanidades psicóticas eram cometidas diariamente, há, pelo menos, 17 anos.
Com a chegada dos agentes da Polícia Civil, os olhos da menina ainda amordaçada se encheram de lágrimas. A policial que estarrecida se prontificou a soltar a prisioneira ficou ainda mais escandalizada ao perceber que a mordaça escondia uma gaze encharcada de pimenta. Assim que soltou a primeira mão, a menina se apressou em colocar o dedo na boca. Sussurrou: “cchhiiii, ela pode ouvir!” A agente pôde ver então as feridas nos dedinhos da menina, com unhas quebradas e pontas roxas. Ao ser questionada sobre os machucados, a garota se levantou e foi a um armário. Abriu a porta. Revelou-se então uma verdade inaceitável, absurda, segundo as palavras da policial. Ali estavam alicates e outros objetos usados nas sessões de tortura diárias, ainda manchados com o sangue da vítima.
Ao conversar com L. os policiais perceberam que sua língua também apresentava feridas. A resposta foi pavorosa. A empresária fazia cortes com alicate, e não satisfeita com a própria crueldade, puxava a garota pela casa, com a língua presa pela ferramenta. Conforme os depoimentos e perícias revelavam novas atrocidades, os investigadores ficavam ainda mais estupefatos. Os maus tratos incluíam colheres quentes na boca, surras, multilações, fome e humilhações.
Conivente, a empregada, Vanice Novaes, tentou impedir a entrada da polícia, mas teve de colaborar com a apuração. Contou aos policias que Silvia costumava fazer as sessões quando estava nervosa. A diabólica terapia trazia de volta a calma à empresária. Além das duas, também morava na casa a mãe de Silvia, de 82 anos, bem como o marido o filho, todos indiciados por conivência. Contudo, L. não era a primeira, outras vítimas já haviam passado pela masmorra, a mais velha delas com 21 anos, no momento. Como Silvia prendia tantas crianças sem ser denunciada?
Ela as comprava. Isso mesmo, comprava. Com promessas de uma vida melhor, tratamento médico e boas escolas, a degenerada empreendedora procurava famílias carentes do Estado. Desacreditados pela própria condição financeira, e muitas vezes tendo outros tantos filhos para criar, os pais aceitavam o dinheiro. É desconcertante ver até que ponto vai a barbaridade do plano.
O que será dessa menina? Após uma experiência traumática, ela não poderá contar com a mãe, que está sendo indiciada pela justiça. O pai ausente foi impedido pelos tribunais de obter a guarda da filha. Na delegacia, a agente que libertou L. contou que a garota demonstrava uma preocupação muito clara, o estado em que se encontrava a torturadora. “Ela está presa? Está sentada? Está comendo?” Uma criança de doze anos achava pequena a punição da criminosa, queria que o crime fosse pago com a mesma moeda, sofrimento e brutalidade. Não há como não ficar perplexo diante da violência psicológica que sofreu a menina.
Infelizmente, o caso não ganhou a devida veiculação. Na mesma semana, outro escândalo familiar na classe média superou a noticiabilidade de L. Ambas são crianças. Uma de cinco e uma de doze anos. O caso de Isabella tem agravantes, o principal suspeito é o pai e o seu corpo foi atirado do sexto andar de um prédio, mas o sofrimento de L. me parece mais sádico, se é que dor é algo que pode ser medido.
L. não pode ser identificada. Por medida judicial, o verdadeiro nome da criança está protegido. Seja ele Larissa, Lívia, Laura ou Lúcia, representa mais um capítulo do lívido quadro de crimes hediondos no Brasil, que desafia a lucidez. Lastimável.
Você que acompanha o blog deve ter sentido falta de figuras de linguagem e artifícios alegóricos ao ler o texto, ainda mais num tema tão sensível quanto violência na infância. Peço licença para dizer que não há o que florear, a história por si só já causa um impacto muito maior que o suficiente para chocar e instigar duras reflexões. Mais palavras seriam só palavras.
Um comentário:
Vinícius... Sei que essa não é sua característica de redação... Mas foi a melhor que eu já li!! E olha que eu já li muitas, hein?!
Quanto aos casos, eu sinceramente não me sinto comedido o suficiente para falar sobre o assunto. Não que eu não tenha uma opinião formada sobre o assunto discorrido, ao contrário, abomino totalmente as práticas de tortura! Só que as pessoas que realizam essas crueldades me causam os piores sentimentos que se possa relatar numa página de tão alto nível... Enfim. Algo de bom sempre é tirado com a mídia. Pelo menos essas crianças serão atendidas por um sistema, apesar das perdas inreparáveis que não se compensam com nenhum tipo de quantia, e sim com justiça. Contudo, penso nas crianças que nem saem nos jornais... Os filhos da classe D e E... "dos filhos deste solo"!
Dan Gabriel D'Onofre
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