Ao sacar seu cartão de crédito, João é surpreendido. “As parcelas a partir de 12 vezes são só para negros”, adverte o vendedor. Sem entender, coça seus cabelos crespos, e argumenta: “Mas eu sou negro, filho e neto de negros.” O caixa pega então o cartão e lê a identificação: “João Pereira de Souza: 45% negro, 25% pardo, 20% árabe e 10% branco. Se não é 50% negro não pode comprar em 12 vezes, apenas em 6. Parece que um de seus avós pulou a cerca.”
A esdrúxula história tem como único objetivo mostrar quão equívoca é a “discriminação positiva” entre as etnias de um país. Esta semana um estimável grupo de ilustres apresentou ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, um manifesto contrário às cotas raciais nas universidades públicas. A carta assinada por Caetano Veloso, João Ubaldo Ribeiro, Demétrio Magnoli e Ferreira Gullar, entre outros “representantes” da sociedade civil, tem como argumento central a deficiência da política de inclusão. O grupo acredita que a iniciativa favorece uma minoria negra que teve acesso à formação intelectual de qualidade, o que se opõe às condições da população pressuposta pelo programa.
Tomando como base um dado claro na sociedade brasileira: a presença majoritária de negros nas camadas menos abastadas, a proposta foi elaborada para garantir que o número de desfavorecidos cresça entre os universitários. Ainda que bem intencionada, a ação oculta um preconceito, o de que ser negro é condição si ne qua non para ser pobre. Ao se contrapor à medida, a carta evidencia um traço que também é claro no Brasil: a presença de negros nas classes mais bem remuneradas da sociedade. Apesar de proporcionalmente menor, esse grupo de negros nas classes A, B e C têm se beneficiado com as cotas, tirando oportunidades de negros, brancos e pardos que deveriam ser os alvos do programa.
Ainda que a crítica proceda – e quem sou eu para julgar o contrário, visto o gabarito dos signatários – não é de bom tom esquecer que grande parte dos negros ainda não conseguiu superar as seqüelas da senzala, e mesmos os que obtiveram definitivamente a alforria, tiveram e têm que enfrentar preconceitos. Exemplos como Joaquim Barbosa, Ministro do Supremo, só pelo fato de serem exemplos, refletem a posição de desvantagem em que a população negra se encontra. Infelizmente, ainda possuem caráter de exceção. O racismo existente no Brasil talvez seja mais difícil de combater por ser camuflado, porém, não é esse o ponto central da discussão das cotas. Como política de inclusão, ela não se concentra em persuadir, mas em incluir. As cotas, portanto, não são uma forma de pagar a dívida que o país tem com os afro-descendentes, nem de derrubar os resquícios.
São uma forma de garantir que um extrato da sociedade, que não é necessariamente negro, tenha chances de exercer profissões bem remuneradas e prestigiadas, além de obter formação intelectual mais rica. A política de cotas é valida sim, mas se for direcionada a alunos de colégios públicos de má qualidade e pessoas de baixa renda de modo geral. Não como medida definitiva, e sim como reparo para os danos causados pela deficiência do Estado em fornecer educação digna.
Muitos criticam as cotas por supor que a proposta em tese provisória se tornará definitiva. É um risco que não deve ser marginalizado, cabe a sociedade cobrar. Ao mesmo tempo que a entrada na universidade é facilitada, os maiores investimentos devem ser deslocados para a educação de base. Países como Coréia do Sul, Espanha e Irlanda que tiveram essa iniciativa, hoje gozam de vigoroso crescimento econômico. Desse modo, aos poucos, serão suprimidas as vagas resguardadas. O que não pode ocorrer é estabelecer metas para os próximos quinze ou vinte anos, esquecendo os alunos que freqüentam as escolas públicas hoje. Questões emergenciais requerem medidas urgentes e planejamento para a posteridade. Essa é a dívida que deve ser quitada com as cotas.
Vestibulares à parte, o acesso universalizado ao nível superior é uma meta vital para um país que almeja o Primeiro Mundo. Seja pelo Prouni, pelos concursos tradicionais ou pelas instituições privadas, a pífia taxa de formados deve crescer. Não estatisticamente, pois números podem sonegar baixa qualidade. Aqui, bem se sabe que índices são para “inglês ver”. O brasileiro, se deseja de fato estabelecer uma democracia em seu país, precisará de desenvolvimento intelectual para atingir o esclarecimento. Só então poderá mudar o que há de irracional em sua cultura e política, e por um ponto final em débitos sociais sem revanchismos. As evidências são claras.
sábado, 3 de maio de 2008
A dívida que permanece
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Um comentário:
Sem comentárioas acerca da política de cotas, os quais, na maioria dos casos, reduzem o discurso ao senso comum.
É interessante notar que críticos das cotas nas Universidades Públicas nunca citam o ProUni. O ProUni também possui sistema de cotas para negros (comprovadamente de baixa renda). Ele não tem nada de "errado"? Por quê?
Porque não toca na vaga pública. Em outras palavras: cota para negros em universidades privadas - ok; cotas para negros em universidades públicas - necessário avaliar muito.
Infelizmente o vestibular se transformou em competição da classe média(-alta), e tudo que ameace determinados interesses é criticado. A medida de cotas raciais tem falhas sim. Mas eu gostaria de ler outras alternativas para ela, que não o costumeiro "melhorar o ensino público".
Muito bom texto, Vinícius.
Abraços
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